terça-feira, 9 de junho de 2015

O Jesus histórico e a obscuridade da luz

Dhiego Recoba
Sempre que escuto alguém começar uma conversa com "Jesus disse", deparo-me diante da mesma dúvida, terrível no entender dos inquisidores de ontem e de hoje. Jesus disse, ou alguém disse que Jesus disse? Ou ainda, para agravar o quadro de incerteza: o quanto daquilo que se ouviu dos testemunhos foi, de fato, dito por Jesus?
Willem Dafoe como Jesus, em A Última Tentação de Cristo (Filme de Martin Scorcese - 1988).
 
Sob o olhar daqueles que têm por hábito ler a Bíblia sem criticidade alguma, como se vivessem em um tempo anterior a Martinho Lutero (e vivem, de certo modo), tais indagações soam como vãs elucubrações, produzidas apenas para atazanar a santa paz do conhecimento pronto trazido por um intermediário qualquer – seja ele pastor, padre, entre outros – que julga ter o monopólio da interpretação acerca de Jesus. Mediação que, ironicamente, foi rechaçada pelo Nazareno ao longo de sua caminhada na Terra.
 
Em As Palavras Desconhecidas de Jesus, Joaquim Jeremias (um teólogo alemão nascido na cidade de Dresden, que viveu entre 1900 e 1969) aponta não mais que duas dezenas de citações como sendo realmente insuspeitas. Outro alemão, especialista no Novo Testamento, Ernst Käsemann, vai além, ao afirmar que “é deprimente verificar quão pouco do que é narrado sobre Jesus no Novo Testamento pode ser considerado autêntico. A figura histórica de Jesus só pode ser reconhecida em algumas palavras do Sermão da Montanha, nas discussões com os fariseus, em algumas parábolas e em algumas outras narrativas”¹.
 
É grande a escassez de fontes confiáveis a respeito do Jesus histórico, já que os primeiros textos sobre a sua vida surgiram após duas ou três gerações, por volta de 70 d.C. É o que afirma Holger Kersten , outro teólogo alemão, em sua obra Jesus Viveu na Índia – A desconhecida história do Cristo antes e depois da crucificação. Digna de compor quaisquer Index Prohibitorum, o autor afirma que o cristianismo de hoje pouco tem em comum com as ideias que Jesus ambicionava difundir, pois muitos dos princípios doutrinários constantes no testemunho de Paulo são antagônicos à mensagem do Cristo. Em outras palavras, como disse Emil Brunner: “A Igreja é um grande mal entendido. De um testemunho construiu-se uma doutrina; da livre comunhão, um corpo jurídico; da livre associação, uma máquina hierárquica”².
 
O Cristianismo, enquanto doutrina, obteve o consenso mínimo em torno dos evangelhos apenas por volta do século II, tamanha a divergência entre as comunidades e seitas referentes ao cristianismo primitivo, a ponto de terem em comum apenas o nome “cristão”, segundo o filósofo grego Celso, que viveu naquele período. No entanto, a unificação que abriu o caminho para a difusão da fé gerou consigo uma série de livros, denominados apócrifos, os quais modificam radicalmente algumas questões, como, entre outros exemplos, a condição da mulher na sociedade.
 
O cerne do ideário de Jesus consistiu na compaixão universal, a qual nenhum ser é indigno de recebê-la, seja qual for a sua natureza. Nesse sentido, podemos entender que a escolha arbitrária de um escopo doutrinário, que privilegiou os homens em detrimento das mulheres no ordenamento social, constituiu-se no anti-cristianismo porque insere uma vírgula após a célebre sentença Jesus é amor.
A atriz Viviany Beleboni, representando a Paixão de Cristo, durante a 19ª Parada do Orgulho LGBT, em São Paulo.
 
Inevitavelmente, tais questionamentos sobre o real legado de Jesus remetem-nos às reações explícitas de incompreensão sobre o fato ocorrido no último domingo, em São Paulo, durante a Parada GLBT, ilustrada na foto acima. Segundo o deputado federal Jean Wyllys, em seu inflamado artigo publicado no site Carta Capital, o choque causado pela encenação da Paixão de Cristo tem origem na figura transgênero, a qual ocupa o lugar do Nazareno.
 
No entanto, não seria surpreendente uma reação semelhante se, na mesma condição, estivesse uma heterossexual. Nos dias que correm, o desconforto ortodoxo demonstra surgir da troca de papeis previamente determinados pela tradição. No caso em tela, com um agravante: além de ser a figura feminina, é um falso feminino; ou seja, é o homem que ousou descer a uma condição que não é a sua por natureza.
 
Para as mentalidades obtusas, corroídas pelo apego a uma forma de conhecimento que não questiona a si mesmo, um travesti crucificado foi o maior dos acintes que a comunidade GLBT ousou empreender. O fato em si foi um prato cheio para os carolas oportunistas que, com mandatos eletivos nos punhos, manipulam multidões a partir de sentimentos nada cristãos, como o sectarismo e o ódio. Cínicos, assumem o risco de conduzir pessoas nem sempre tão maldosas quanto eles ao encontro dos fariseus, contra os quais Jesus se opôs até o fim de sua vida.
 
Caso a profecia dos fundamentalistas se concretizasse com o retorno de Jesus, este certamente ficaria ao lado dos oprimidos, pois escolheu acompanhá-los em vida, e não ao lado dos mercadores da fé, de acordo com a coerência de sua história.
 
Notas: 
[1] Käsemann, apud Kersten, Holger. Jesus Viveu na India. A desconhecida história do Cristo antes e depois da crucificação. São Paulo: ed. Best Seller, 1988, p. 33.
[2] BRUNNER, Emil, Apud Kersten, 1988, p. 12.

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