terça-feira, 12 de maio de 2015

Thomas Hobbes e o assalto da ambulância

Dhiego Recoba
Um fato insólito ocorreu em Porto Alegre no último dia 07. Incomodados com uma ambulância que estava estacionada para atender a um chamado em um bairro conhecido da cidade, dois motoristas resolveram invadir o veículo a fim de deslocá-lo cem metros à frente. A justificativa: estava atrapalhando o trânsito. Thomas Hobbes ficaria confuso se conhecesse nossos “cidadãos de bem”.

Dois cidadãos porto-alegrenses indignados tomaram uma atitude nada convencional e tampouco solidária na noite de quarta-feira passada. Tomados pela ansiedade que cada vez mais domina os habitantes de grandes cidades, decidiram remover uma ambulância que prestava atendimento na rua Fernandes Vieira, localizada no bairro Bom Fim.

Segundo as informações disponíveis no portal ClicRBS – pertencente ao mesmo grupo investigado pela operação Zelotes da Polícia Federal –, a ambulância estava parada em frente ao número 512 e com a sirene ligada. Incomodados com o que consideraram um estorvo, os dois indivíduos tentaram entrar no veículo pelas portas do motorista e traseiras. No entanto, após o insucesso, conseguiram entrar pela porta do carona.

Após fazer o seu trabalho, o socorrista da ambulância ficou surpreso ao sair do edifício e não encontrar o veículo no mesmo lugar em que havia estacionado. “Se fosse com um familiar deles, não teriam feito isso”, afirmou à reportagem do referido portal de notícias. O atenuante de toda a história foi que o paciente não necessitou ser transportado pela ambulância. Mesmo assim, o fato não deixou de causar estranheza, gerando reações divergentes das pessoas que comentaram a matéria no site. Em sua grande maioria, as opiniões encontradas foram de repúdio às atitudes dos anônimos que decidiram “tomar de assalto” a viatura da SAMU. “Que mundo imundo.... quem presta atendimento de urgência em saúde é acusado de folgado e preguiçoso (será que a burrice é tão grande que não permite saber que neste tipo de atendimento o veículo deve ficar o mais próximo possível da vítima?”, questionou um internauta.

 “Quero ver tu manter a mesma opinião quando o atendimento do SAMU for pra um familiar teu. Quando tiverem que sair com a maca na rua catando a ambulância pra tentar salvar uma vida porque dois idiotas tavam apressadinhos pra chegar em casa e ver a novela”, disse outro navegante do site. Por outro lado, uma das poucas opiniões dissonantes disse: “Pelo jeito tu não é motorista. Tá com alguma emergência? Estaciona numa entrada de garagem então, em vez de ficar atrapalhando a vida dos outros”.

Segundo o código brasileiro de trânsito, “os veículos destinados a socorro de incêndio e salvamento, os de polícia, os de fiscalização e operação de trânsito e as ambulâncias, além de prioridade de trânsito, gozam de livre circulação, estacionamento e parada, quando em serviço de urgência e devidamente identificados por dispositivos regulamentares de alarme sonoro e iluminação vermelha intermitente” (Art. 29, Inciso VII).

Episódios como esse remetem-nos ao Estado de Natureza conceituado por Thomas Hobbes, em meados do século XVII. Vivendo em guerra permanente, os homens garantiriam o principal dos direitos – à vida –  com a formação da sociedade civil regida pelo contrato social, que por sua vez é o resultado da renúncia da liberdade plena – porém insegura – encontrada no estado natural. Se é verdade que o Estado hobbesiano consolidou o poder absolutista (expresso nas célebres palavras de Luís XIV, “O Estado sou eu”), ao mesmo tempo uma das características do Estado moderno em gestação desde o final da Idade Média era a sua impessoalidade, consolidada como um princípio fundamental dos regimentos jurídicos modernos.

Ainda que o ordenamento jurídico e administrativo valha para todos, vê-se com frequência a inversão deste princípio. As leis são manipuladas em benefício próprio, e usualmente os cidadãos que assim o fazem invocam um certo direito de proceder de tal forma, justificando os próprios atos a partir das peripécias protagonizadas pela classe política, como se os descalabros dos “de cima” justificassem os delitos rotineiros dos “de baixo".

Não importam as razões. Fato é que cada vez mais a razão egoística se sobrepõe ao regramento coletivo. Curiosamente, os protagonistas são os mesmos que costumam bradar por um país mais correto, mas demonstram uma incapacidade crônica de compreender que não se constrói a sociedade idealizada sem renunciar em alguns momentos a certos direitos individuais, como no caso do referido acontecimento em que o direito de ir e vir foi restringido. Da resolução deste contrasenso depende o nascimento do Brasil que se exige nos discursos demagógicos que ecoam nas ruas.

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