sexta-feira, 20 de março de 2015

Para além de “Medida por medida” na política atual

Alexander Martins Vianna
“Alguns, pelo pecado, ascendem.
Outros, pela virtude, decaem...”
(Measure for Measure, W.S.)

Está cansativo, muito cansativo... Não falo de suportar o desconforto pessoal pós-operatório, mas de lidar com a polarização simplificadora, oportunista e emburrecedora nos assuntos públicos atuais. Há um total esvaziamento de espírito republicano em algumas condutas públicas de assuntos estatais. Assunto público sério tem se tornado piada ou conversa fiada de “comadres” (no sentido patriarcal). E um poder legislativo que se pretende “puro” na figura do atual presidente, colocando na conta do executivo a “corrupção”, dá-me a sensação de que estou dentro de uma caricatura de “Medida por Medida”.
 
A partidarização e a privatização do assunto "corrupção" tem criado muita cortina de fumaça moralina no Brasil recente, que deixa pouco a dever às figuras cênicas de “puritanos”, criticadas por W.S.. Sabemos que o buraco é bem mais embaixo, começa na educação, mas também não podemos deixar de cobrar que os representantes, como figuras públicas que encarnam o Estado, sejam os primeiros a dar o bom exemplo secular e republicano para a sociedade, mas com a medida discricional e autocrítica de um Vicentio. Contudo, ver o atual presidente do poder legislativo posar de “puro” e “engenhoso retórico” é tão caricato quanto um Angelo – é caricato porque é um Angelo sem Escalo (i.e., sem senso de equidade – e de ridículo!).

O fato de não haver uma lugar absolutamente “puro” (livre de corrupção) nas relações interpessoais particulares não diminui as nossas demandas por combate à corrupção na esfera pública. Se cairmos em tal armadilha moralina, corremos o risco de dois extremos: a imobilidade, no sentido de que, se sou “domesticamente roto”, não posso falar do “publicamente esfarrapado” (neste caso, não haveria o aprendizado político ao modo de Vicentio); ou o desejo insensato, impossível e tirânico de “pureza”, a ditadura dos puros, perfeitos, precisos, eleitos, etc (neste caso, o governo hipocritamente virtuoso de Angelo). Tal polarização simplificadora acontece quando acionamos determinados dispositivos morais-cognitivos para pensar a relação entre público e privado como se a “rua” fosse a “casa”. Ora, já aprendemos, desde Maquiavel, que a moral que conduz assuntos de Estado não é a mesma dos assuntos pessoais e domésticos. O próprio Lutero também sabia disso.

Os políticos constitucionais atuais, como representantes do poder público e civilizatório do Estado no Brasil, andam meio esquecidos de seu papel propedêutico perante a sociedade. No clima atual, qualquer argumento minimamente lúcido sobre combate à corrupção pode facilmente ser colocado fora de contexto no ambiente predatório, autofágico e polarizado do Congresso, perdendo-se a chance de ouvir e aprender com boas ideias. O assunto “corrupção no Estado” não pode ser tratado como algo doméstico ou exclusivo de um partido ou área de poder. Que fique bem claro que não falo isso para atenuar a responsabilidade aparelhadora e decepcionante do PT no estado atual de coisas no Brasil.

A própria forma de conceber governabilidade para qualquer agenda do executivo no legislativo já é um convite à corrupção. Não há qualquer proteção regulamentar à sociedade que impeça que uma maioria no legislativo, sem a menor ética representativa, trave pautas prioritárias apenas para desestabilizar uma “situação” que desagrade porque não atendeu aos seus interesses de cargos ministeriais ou em demais agências de governo em áreas estratégicas (e ricamente licitatórias) como a energética. Por isso, para mim, a atual presidência do congresso deixa pouco a dever ao hipócrita Angelo de “Medida por Medida”. Por onde anda Escalo? A estrutura político-partidária atual não tem escala para medir qualquer coisa com um mínimo de discernimento centrado efetivamente no bem-comum. É tudo um jogo cênico inconsistente, tal como a virtude de Angelo, mas do qual todos os cidadãos se tornam reféns...

É politicamente deseducador abordar o assunto "corrupção no Estado" como algo “doméstico” (o liberalismo moralina atual adora fazer isso), como algo de “um partido” ou como algo “endêmico no Brasil” (i.e., em chave de destino “vira-lata”). Tudo isso cria foco equivocado de ações que desperdiçam a energia dos política e eticamente indignados atualmente. Quando o campo “crítico” é assim configurado, perdemos tempo demais sendo defensivos sobre agendas erradas, o que é sintomático em enunciados do tipo: “Os críticos à corrupção só criticam a corrupção porque o PT é situação”; “Se você é, nas coisas miúdas, corrupto, não deveria reclamar da corrupção no Estado. Vota direito na próxima vez!”; “A corrupção é algo estrutural no Brasil, vem desde a colônia. Nada muda...”(ou tudo se desculpa...).

Todos esses enunciados criam uma percepção, respectivamente, partidarizada, doméstica e de fado histórico imutável, o que me faz pensar no quanto a minha profissão é relevante. Todos esses enunciados apontam para armadilhas na forma de conceber ação, ou inação... Nada disso qualifica ou eleva a discussão para a complexidade que a matéria deveria ter, pois restringe as opções em: “puritanismo político hipócrita”, “cinismo adaptativo partidarizado autorreferido” ou “indiferença de banzo” (“políticos são todos iguais – não há o que fazer”). Todas essas opções são eticamente deletérias para a democracia e provocam deseducação política para um efetivo espírito republicano.

A relação estrutural que forma a corrupção na esfera pública é feita por configurações assimétricas de indivíduos e fatores sociais localizados no espaço e no tempo e, portanto, disponíveis à ação de combate dos cidadãos representantes e representados. Daí, parece-me uma piada mal contada que somente agora se tenha chegado ao óbvio em abordagem jurídica: nas matérias de Estado, o crime de corrupção tem “mão dupla”, ou seja, quem corrompe e quem se deixa corromper – portanto, ambos devem ser punidos patrimonialmente e criminalmente. As configurações históricas de corrupções em matérias estatais não são imutáveis; pelo contrário, complexificam-se à medida que a sociedade muda, que novos atores sociais e políticos entram em cena, que padrões de direito e justiça se transformam, que novas agendas de direito ganham força e à medida que há efetiva transparência democrática para uma imprensa igualmente livre, abrangente e diversificada nos efeitos de informação.

Não precisamos ser “precisamente puros”, em escala doméstica, para sermos críticos na esfera pública. Esperar um lugar de “absoluta pureza doméstica” ou “partidária” para que haja ação na esfera pública é pretender um vínculo causal de perfeição moral entre esferas doméstica e pública próprio de repúblicas de “puros/eleitos”, as quais não existem neste mundo. Lutero e Maquiavel sabiam disso. Permitam-me um paralelo histórico...

Para a teologia política protestante do século XVI, a exemplo de Martinho Lutero em seu sermão “SOBRE A AUTORIDADE SECULAR”, só o eleito é “livre da lei”, no sentido de que não precisa dela para ser forçado à honestidade, mas deve se submeter aos efeitos da lei. Esta discussão estava relacionada a um entendimento da natureza paradoxal humana e, portanto, do Estado: as leis servem para conter o “réprobo”, que é a maioria, mas mesmo os “eleitos” podem não ser “puros” (i.e., livres do erro) a vida toda. Para Lutero, se as leis são necessárias é porque não somos suficientemente “puros/eleitos” para prescindirmos dela. Disso decorre, na chave atual, que precisamos ser vigilantes sem sermos “puritanos”, para não perdermos o foco da complexidade da matéria do Estado.

Penso que devemos deixar de alimentar falsos problemas e enfrentar, como adultos políticos, a condição paradoxal do Estado, que é feito e imperfeito, mas não é destino... O Estado é a encarnação suprema de nossa imperfeição e incompletude na “vida em comum” para além da esfera doméstica. Como Lutero e Maquiavel sabiam, a perfeição não é para “este mundo”. Devemos, sim, exigir o combate à corrupção no Estado, mas desconfiar: (1) dos supostos “puros” que querem governá-lo com as “desmedidas” hipócritas de um Angelo; (2) dos “cínicos” que alimentam as forças da “situação” e esvaziam a crítica necessária e aperfeiçoadora do Estado e da estrutura representativa quando atinge os interesses de aparelhamento do Estado por seus partidos; e (3) dos “sinceros indignados” que acreditam que a crítica não é válida quando partidarizada. Tudo isso simplifica a matéria política do Estado. E nossa voz crítica não pode ser alarido banal e simplificador.

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