Alexander Martins Vianna
Uma educação de tempo integral significa uma outra concepção de escola. Entre outras coisas, trazer para dentro dela atividades que, atualmente, a classe média apertadamente consegue dar aos seus filhos, mas não a maioria da população. A educação de tempo integral não é prisão. Quem disse que os espaços de descobertas e liberdade não podem ser as escolas? Afinal, é um lugar de encontros de múltiplos horizontes, experiências e paradigmas. O problema é que há professores que estão pensando este assunto de forma antiga: a partir da experiência ruim do que existe hoje nas escolas, em vez de projetarem novos horizontes de expectativas para as suas práticas profissionais e para os espaços de experiências de trabalho.
O fato social que não podemos esquecer é que a escola de quatro horas é socialmente excludente: demanda uma presença de família e recursos materiais na família que faltam à maioria da população. E supor que numa sociedade urbano-industrial a preparação para a vida adulta está completamente na mão da família me faz pensar numa visão muito aristocrática, “à la Ancien Régime”, na forma de pensar o processo educacional como algo eminentemente doméstico e/ou vicinal-corporativo. Uma educação de tempo integral é fundamental para provocarmos algum nivelamento nos pontos de partidas de nossas crianças.
Uma escola de quatro horas pressupõe famílias e recursos de classe média que supram o que, na prática, a escola deveria oferecer, considerando a carga de impostos que pagamos. Uma escola de quatro horas exige empregada, babá, creche, vizinha, sogra, cunhada ou que simplesmente um dos cônjuges (geralmente a "mulher") não trabalhe, ou trabalhe meio-expediente, sendo apenas "renda complementar" (i.e., sem soberania financeira), para que haja alguém para estar com as crianças quando ambos os pais não podem. E sabemos que muitas crianças nas escolas públicas atuais não contam com ambos os pais na rotina doméstica – muitas são criadas por avós. Parece que, até o momento, quem é contra a educação de tempo integral está pensando a escola apenas como um sistema prisional. É um erro de concepção. Este não pode ser o parâmetro para se pensar a educação de tempo integral.
A educação de tempo integral é mais do que ampliar horário de permanência de professor e aluno na escola. Para ser viável, toda a estrutura escolar do Brasil deve mudar, tanto a forma de conceber a integração de atividades na escola quanto o próprio espaço escolar, a carreira docente e a sua forma de ocupação de carga horária, de modo que seu trabalho na escola não seja apenas "dar aula" em turmas superlotadas, ou se fazer com que trabalhar numa escola se torne um sistema prisional disfarçado. A educação de tempo integral exige produção acadêmica dos docentes, ou seja, tempo para refletir, estudar e produzir sobre suas práticas localizadas na escola, devendo tudo isso ser contado em sua carga horária.
A educação de tempo integral demanda saídas programadas e guiadas do espaço escolar – trabalhos de campo – para vivências desafiadoras, práticas ou aplicáveis de algumas formas escolarizadas de saberes; ou a possibilidade da fruição de exposições de arte ou de outra natureza, por exemplo, que um professor poderia incluir “como cotas de eventos” em sua programação como atividade extraclasse de seus alunos, mas integrada a processos ou objetivos pedagógicos de sua área de saber. Afinal, de que adianta, por exemplo, uma “aula de arte” sem fruição de espaços de arte para além da escola? Portanto, a educação de tempo integral demanda a integração de processos, tempos e espaços de um modo organicamente estruturado com a reformulação da carreira docente, de modo que o trabalho efetivo de preparação para a integração de processos esteja contabilizado em sua carga horária. Isso seria fundamental para que a prática atual – isolada e assistemática – de alguns docentes deixasse de ser improvisada ou uma batalha constante contra uma estrutura ingrata, para se tornar, efetivamente, parte da rotina escolar e de sua carga horária. Afinal, tudo isso exige preparação, tempo e estudo.
Para que a educação de tempo integral seja viável, o docente do ensino básico precisa de um plano de carreira, progressões, responsabilidades, sistemas de aferição de mérito e exigências análogas àquelas dos professores universitários das instituições federais. Portanto, não pode haver superlotação de turmas, mas sim um teto de orientação educacional por professor. A educação de tempo integral é cara e necessária, feita por profissionais caros, qualificados e adequadamente responsabilizados pelo resultado de seus trabalhos. Investir nisso é mais socialmente lucrativo do que salvar banqueiros, sustentar a corrupção ou manter benesses exorbitantes para os “representantes” políticos da população e os togados do judiciário, que se comportam como casta num país tão desigual e socialmente violento.
Para que a educação de tempo integral seja viável, a escola não pode ser precarizada, nem seu docente, nem sua carreira; não deve haver superlotação de turmas, mas uma relação qualitativa de acompanhamento de discentes por docentes, o que torna a condição de D.E. uma possibilidade lógica deste tipo de carreira. Propostas que não ornem com isso serão simples adaptações à precariedade preexistente, mas com um novo desenho de carga horária docente. Isso seria mais uma mentira institucionalizada, como tantas que andam por aí neste país de fábulas olímpicas. A escola deve valorizar as áreas de formação de seus docentes, em vez de diluí-las em generalidades que não dialogam com os centros de formação de ondem vieram, de modo a ampliar o diálogo efetivo entre produção universitária e produção escolar.
Definitivamente, educação de tempo integral não é isso que se tem vinculado nos debates que tenho observado nas redes sociais, com professores desistindo da ideia porque tem sido mal concebida e/ou mal debatida pelas secretarias de educação e sindicatos. Então, penso que os professores do ensino básico precisam de uma reflexão de carreira mais séria; que isso seja encampado efetivamente pelos seus sindicatos. Isso não pode ser feito a partir do que já existe, pois o que existe não funciona, precariza, adoece e mata nossos docentes – ou torna cínicos e céticos adaptados os muitos sobreviventes desta “máquina de moer ossos”. Precisamos construir novos horizontes de carreiras, responsabilidades, espaços e dinâmicas escolares; precisamos que isso seja política de estado e não de partido; precisamos que os sindicatos representem os professores nisso – que não sejam apenas sucursais de agendas de partidos políticos.
Os argumentos que tenho ouvido de alguns docentes são bem sintomáticos da violência estrutural a que estão submetidos: esvaziam a si mesmos como protagonistas do processo, empurrando-se para argumentos céticos, ou em chave de destino (o "Brasil é assim mesmo", o "no Brasil tudo muda para ficar do mesmo jeito", etc). Imaginem o tipo de prejuízo ético de longo prazo que temos ao vermos nossos professores passando esta carga de sentimento e entendimento sobre o país para seus alunos – é a tacanha “síndrome de vira-lata”, tão adequada à manutenção do status quo.
Ora, tudo isso serve apenas para reproduzir o ethos de cético-cínico, ou de mundo como destino em nossos professores – ambos os humores implicam apenas em adaptação à precariedade, como se as escolas se tornassem versões atenuadas de campos de concentração. É próprio do argumento utópico moderno provocar o olhar para além da necessidade imediata. Quem apenas se mede pela necessidade imediata, opera com ethos de sobrevivente ou de “bicho”. Por quanto tempo alguns considerarão isso suportável? Tanta violência estrutural se inscreve em seus corpos e mentes, mas é possível ir além disso – não se deixar reduzir a “bicho”. Espero que ouçam isto sem pressa. As palavras não visam a ofender, mas sim a explicitar o que me parece ser uma lógica social e comportamental que nos impomos e que ratifica as estruturas de poder, que querem justamente que não nos vejamos como protagonistas válidos na sociedade e em nossa carreira.
Quando falo em educação de tempo integral não falo do que existe ainda. O que efetivamente existe os professores já conhecem e sofrem. Falo do que precisa ser feito. Pensar para além da necessidade imediata é próprio do pensamento utópico-diatópico – que é o avesso do ceticismo conservador ou do pessimismo de “vira-lata”. Os professores do Ensino Básico e seus sindicatos devem se tornar protagonistas desta discussão. Não podem olhar o problema de dentro da precariedade atual, mas colocarem a cabeça para fora e criar novos horizontes de reflexão. O debate não deve ser descartado, mas aperfeiçoado, com mais protagonismo propositivo dos docentes.
O que tenho observado, até agora, é apenas uma reação de negação ao que está sendo proposto pelo governo, mas não uma ação de reflexão pungente e consistente sobre uma alternativa de efetiva viabilização. A maioria está abordando o assunto a partir da precariedade preexistente, em vez de refletir sobre o tipo de precariedade que deve ser superado para que a educação de tempo integral seja concebida com efetiva integração de fatores e processos visando ao desenvolvimento humano. Precisamos ser ousados na reflexão e na proposta, não desistir da ideia somente porque está sendo mal concebida ou mal apresentada pelos agentes do governo. É disto que falo. Falar que é utopia (no sentido de impossível) é desistir sem lutar. Neste caso, o que resta é alarido, alarido cético ou com pretensões de destino, ou um melancólico e fétido silêncio de pântano.
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