sexta-feira, 20 de março de 2015

Para além de “Medida por medida” na política atual

Alexander Martins Vianna
“Alguns, pelo pecado, ascendem.
Outros, pela virtude, decaem...”
(Measure for Measure, W.S.)

Está cansativo, muito cansativo... Não falo de suportar o desconforto pessoal pós-operatório, mas de lidar com a polarização simplificadora, oportunista e emburrecedora nos assuntos públicos atuais. Há um total esvaziamento de espírito republicano em algumas condutas públicas de assuntos estatais. Assunto público sério tem se tornado piada ou conversa fiada de “comadres” (no sentido patriarcal). E um poder legislativo que se pretende “puro” na figura do atual presidente, colocando na conta do executivo a “corrupção”, dá-me a sensação de que estou dentro de uma caricatura de “Medida por Medida”.
 
A partidarização e a privatização do assunto "corrupção" tem criado muita cortina de fumaça moralina no Brasil recente, que deixa pouco a dever às figuras cênicas de “puritanos”, criticadas por W.S.. Sabemos que o buraco é bem mais embaixo, começa na educação, mas também não podemos deixar de cobrar que os representantes, como figuras públicas que encarnam o Estado, sejam os primeiros a dar o bom exemplo secular e republicano para a sociedade, mas com a medida discricional e autocrítica de um Vicentio. Contudo, ver o atual presidente do poder legislativo posar de “puro” e “engenhoso retórico” é tão caricato quanto um Angelo – é caricato porque é um Angelo sem Escalo (i.e., sem senso de equidade – e de ridículo!).

O fato de não haver uma lugar absolutamente “puro” (livre de corrupção) nas relações interpessoais particulares não diminui as nossas demandas por combate à corrupção na esfera pública. Se cairmos em tal armadilha moralina, corremos o risco de dois extremos: a imobilidade, no sentido de que, se sou “domesticamente roto”, não posso falar do “publicamente esfarrapado” (neste caso, não haveria o aprendizado político ao modo de Vicentio); ou o desejo insensato, impossível e tirânico de “pureza”, a ditadura dos puros, perfeitos, precisos, eleitos, etc (neste caso, o governo hipocritamente virtuoso de Angelo). Tal polarização simplificadora acontece quando acionamos determinados dispositivos morais-cognitivos para pensar a relação entre público e privado como se a “rua” fosse a “casa”. Ora, já aprendemos, desde Maquiavel, que a moral que conduz assuntos de Estado não é a mesma dos assuntos pessoais e domésticos. O próprio Lutero também sabia disso.

Os políticos constitucionais atuais, como representantes do poder público e civilizatório do Estado no Brasil, andam meio esquecidos de seu papel propedêutico perante a sociedade. No clima atual, qualquer argumento minimamente lúcido sobre combate à corrupção pode facilmente ser colocado fora de contexto no ambiente predatório, autofágico e polarizado do Congresso, perdendo-se a chance de ouvir e aprender com boas ideias. O assunto “corrupção no Estado” não pode ser tratado como algo doméstico ou exclusivo de um partido ou área de poder. Que fique bem claro que não falo isso para atenuar a responsabilidade aparelhadora e decepcionante do PT no estado atual de coisas no Brasil.

A própria forma de conceber governabilidade para qualquer agenda do executivo no legislativo já é um convite à corrupção. Não há qualquer proteção regulamentar à sociedade que impeça que uma maioria no legislativo, sem a menor ética representativa, trave pautas prioritárias apenas para desestabilizar uma “situação” que desagrade porque não atendeu aos seus interesses de cargos ministeriais ou em demais agências de governo em áreas estratégicas (e ricamente licitatórias) como a energética. Por isso, para mim, a atual presidência do congresso deixa pouco a dever ao hipócrita Angelo de “Medida por Medida”. Por onde anda Escalo? A estrutura político-partidária atual não tem escala para medir qualquer coisa com um mínimo de discernimento centrado efetivamente no bem-comum. É tudo um jogo cênico inconsistente, tal como a virtude de Angelo, mas do qual todos os cidadãos se tornam reféns...

É politicamente deseducador abordar o assunto "corrupção no Estado" como algo “doméstico” (o liberalismo moralina atual adora fazer isso), como algo de “um partido” ou como algo “endêmico no Brasil” (i.e., em chave de destino “vira-lata”). Tudo isso cria foco equivocado de ações que desperdiçam a energia dos política e eticamente indignados atualmente. Quando o campo “crítico” é assim configurado, perdemos tempo demais sendo defensivos sobre agendas erradas, o que é sintomático em enunciados do tipo: “Os críticos à corrupção só criticam a corrupção porque o PT é situação”; “Se você é, nas coisas miúdas, corrupto, não deveria reclamar da corrupção no Estado. Vota direito na próxima vez!”; “A corrupção é algo estrutural no Brasil, vem desde a colônia. Nada muda...”(ou tudo se desculpa...).

Todos esses enunciados criam uma percepção, respectivamente, partidarizada, doméstica e de fado histórico imutável, o que me faz pensar no quanto a minha profissão é relevante. Todos esses enunciados apontam para armadilhas na forma de conceber ação, ou inação... Nada disso qualifica ou eleva a discussão para a complexidade que a matéria deveria ter, pois restringe as opções em: “puritanismo político hipócrita”, “cinismo adaptativo partidarizado autorreferido” ou “indiferença de banzo” (“políticos são todos iguais – não há o que fazer”). Todas essas opções são eticamente deletérias para a democracia e provocam deseducação política para um efetivo espírito republicano.

A relação estrutural que forma a corrupção na esfera pública é feita por configurações assimétricas de indivíduos e fatores sociais localizados no espaço e no tempo e, portanto, disponíveis à ação de combate dos cidadãos representantes e representados. Daí, parece-me uma piada mal contada que somente agora se tenha chegado ao óbvio em abordagem jurídica: nas matérias de Estado, o crime de corrupção tem “mão dupla”, ou seja, quem corrompe e quem se deixa corromper – portanto, ambos devem ser punidos patrimonialmente e criminalmente. As configurações históricas de corrupções em matérias estatais não são imutáveis; pelo contrário, complexificam-se à medida que a sociedade muda, que novos atores sociais e políticos entram em cena, que padrões de direito e justiça se transformam, que novas agendas de direito ganham força e à medida que há efetiva transparência democrática para uma imprensa igualmente livre, abrangente e diversificada nos efeitos de informação.

Não precisamos ser “precisamente puros”, em escala doméstica, para sermos críticos na esfera pública. Esperar um lugar de “absoluta pureza doméstica” ou “partidária” para que haja ação na esfera pública é pretender um vínculo causal de perfeição moral entre esferas doméstica e pública próprio de repúblicas de “puros/eleitos”, as quais não existem neste mundo. Lutero e Maquiavel sabiam disso. Permitam-me um paralelo histórico...

Para a teologia política protestante do século XVI, a exemplo de Martinho Lutero em seu sermão “SOBRE A AUTORIDADE SECULAR”, só o eleito é “livre da lei”, no sentido de que não precisa dela para ser forçado à honestidade, mas deve se submeter aos efeitos da lei. Esta discussão estava relacionada a um entendimento da natureza paradoxal humana e, portanto, do Estado: as leis servem para conter o “réprobo”, que é a maioria, mas mesmo os “eleitos” podem não ser “puros” (i.e., livres do erro) a vida toda. Para Lutero, se as leis são necessárias é porque não somos suficientemente “puros/eleitos” para prescindirmos dela. Disso decorre, na chave atual, que precisamos ser vigilantes sem sermos “puritanos”, para não perdermos o foco da complexidade da matéria do Estado.

Penso que devemos deixar de alimentar falsos problemas e enfrentar, como adultos políticos, a condição paradoxal do Estado, que é feito e imperfeito, mas não é destino... O Estado é a encarnação suprema de nossa imperfeição e incompletude na “vida em comum” para além da esfera doméstica. Como Lutero e Maquiavel sabiam, a perfeição não é para “este mundo”. Devemos, sim, exigir o combate à corrupção no Estado, mas desconfiar: (1) dos supostos “puros” que querem governá-lo com as “desmedidas” hipócritas de um Angelo; (2) dos “cínicos” que alimentam as forças da “situação” e esvaziam a crítica necessária e aperfeiçoadora do Estado e da estrutura representativa quando atinge os interesses de aparelhamento do Estado por seus partidos; e (3) dos “sinceros indignados” que acreditam que a crítica não é válida quando partidarizada. Tudo isso simplifica a matéria política do Estado. E nossa voz crítica não pode ser alarido banal e simplificador.

Sugestões de leitura complementar do autor:

quinta-feira, 19 de março de 2015

A ressaca de segunda-feira

Daniel Baptista - COLUNA CAVANDO BURACOS
Antes fosse uma ressaca de uma noitada sabem!? Aquela ressaca que te faz pensar nas bobagens, nas piadas e nas palavras proferidas na noite anterior, aquela moleza no corpo que se sente e te transforma em um morto-vivo onde até a luz do sol se transforma em inimiga... Mas não, esta ressaca de segunda-feira está longe de ter sintomas etílicos de uma festa ou de um churrasco em família, é uma ressaca existencial do cenário político brasileiro, uma sensação de incerteza, de estranhamento, onde nada dos ocorridos nas ruas é concreto e ao mesmo tempo tudo são possibilidades reais de acontecimento.

Antes de dar mais uma opinião, entre milhares já emitidas, sobre os protestos que aconteceram no País neste último domingo dia 15 de março (e tentar fugir de lugares comuns como foi a mesma data em que generais tempos atrás empossaram-se presidentes do País, dignas de ser matéria do “Alienígenas do passado”) é preciso e necessário fazer uma reflexão sobre a política do Brasil onde o PT é o expoente principal. Existe uma crise na cúpula governamental sim, criada, inventada pela mídia, prevista, que iria explodir a qualquer hora, não cabe a meu ver encontrar arquitetos, apontar dedos ou achar culpados aqui nesta hora. O fato principal é que ela, a crise, existe e é preciso contorná-la, dentro dos meandros democráticos de respeitabilidade, sem armas, sem milicos, sem golpes.

Para os que foram nos protestos e que exigiam o impeachment de Dilma um recado – se não acreditam é por terem má fé mesmo – não vai rolar. Não existe nada que impeça o exercício da presidenta nos próximos anos, se bem que vale lembrar o que já foi escrito anteriormente, neste cenário nebuloso tudo é possível. Aos que pediram intervenção militar à la 1964, digo-lhes que, tal possibilidade é mais improvável ainda a mais nula e a mais inexistente de todas. Zero. Desistam. Respeitem a nossa balzaquiana democracia, por favor, ela é muito preciosa. Até a Rede Globo em seus editoriais condenou tais manifestações pró-ditadura. Que ironia, logo a Globo cuspindo no prato em que comeram. Com esses lobos se fazendo que cães dóceis e domesticáveis é bom ficar com os dois pés atrás. Aos que mandaram a presidenta Dilma tomar em seu orifício anal, não cabe nem responder (outrora já o fiz, mas o tempo nos torna maduro).

A ressaca que usei como alegoria é a política. São 12 anos de governo PT com os dois primeiros mandatos de Lula onde o Brasil sim, deu um salto como nunca antes na história desse país como o próprio dizia, em conquistas sociais, reduziu-se o número de pobres, de certa forma democratizou o acesso as universidades e faculdades, colocou o Brasil como protagonista no cenário mundial e em uma posição de liderança consolidada na América Latina, a um preço bem alto. O preço, a saber, foi a aliança com as velhas lideranças da política brasileira, o famoso Mensalão “o maior escândalo da política brasileira de todos os tempos”. A herança que Dilma recebeu de Lula no seu primeiro mandato seria - para os mais otimistas da cúpula Petista - o suficiente para a presidenta garantir o segundo mandato (o que não foi tão fácil, pois a sua vitória apertada no segundo turno denota este cenário). Nos quatro primeiros anos de seu mandato veio a estagnação econômica, as polêmicas obras da copa acordadas em 2007, os protestos contra o governo em 2013, a eleição da bancada mais conservadora do congresso desde 1964 e um isolamento político cada vez mais acentuado que culminou na segunda, dia 16 de março como é notório no discurso de Dilma.

Percebe-se uma Dilma acuada, quase sem forças e sem apoio. Uma mulher sendo massacrada impiedosamente 24 horas por dia por milhões de pessoas, que tocam os problemas de corrupção do País apenas na conta dela. Por vezes, tenho pena de Dilma Roussef. Uma mulher que tem a história que ela tem estar sendo tão maltratada por boa parte dos brasileiros e por decisões equivocadas de sua base governamental. Não se governa sozinho aqui no Brasil, é demais, é irresponsabilidade e é de uma miopia política responsabilizá-la por todas as falcatruas que ocorrem no Brasil.

a esquerda que ainda se articula, infelizmente não consegue encontrar elementos que dialogue com o brasileiro médio

Como disse o professor Leandro Karnal, em um videozinho, um recorte, de um programa de televisão que circula pela web, onde ele fala sobre a corrupção, ele lembra que Pero Vaz de Caminha encerra sua carta do descobrimento pedindo um emprego para um parente seu ao rei, relembra também o Barão de Itararé que define corrupção como “é a negociata, o bom negócio para o qual não me convidaram” e sentencia afirmando que “eu sou absolutamente ético e probo quando se trata de atacar o negócio que não me favorece e quando me favorece, é um jeito é uma maneira, é o meu jeitinho clássico.” Isso vai desde cruzar o sinal vermelho no trânsito até não devolver o troco dado a mais no caixa ou aquele gato para pegar a TV a cabo. A corrupção que envolve o nome da Petrobrás e que é destaque nos jornais impressos e televisivos não é exclusiva deste governo (relembrando que os indiciados na operação lava a jato são em sua maioria deputados do PP, mas esta análise não cabe aqui) ela é estrutural, é orgânica e está presente até na Finlândia. Se existe corruptos existe corruptores, em nosso cenário vemos apenas políticos condenados timidamente pelos nossos tribunais em processos e julgamentos que levam anos, décadas. Quando não são arquivados em sua maioria. E dos setores corruptores, temos meia dúzia de doleiros, de marqueteiros, de gerentes operacionais, nunca os nomes que comandam as grandes empreiteiras e os bancos. Como diz Zizek “eles nos fazem acreditar em tudo, menos que é possível mudar o sistema”, e este continua intacto. 

Quanto à governabilidade do PT no âmbito federal, em todos esses anos, observa-se um paralelo muito parecido com a administração municipal aqui de Gravataí, onde o PT governou de 1997 a 2004 com Bordignon, Stasinski de 2005 a 2008 e com Rita Sanco de 2009 a 2011. Todos do PT sendo que a última foi cassada em outubro de 2011 – um “golpe branco” – assumindo em seu lugar Acimar Silva do PMDB. Coincidências a parte o que tem em comum entre a administração municipal e a federal é que o PT, aqui em Gravataí isolou-se progressivamente em sua administração municipal, baseando-se e justificando-se sempre em conquistas de suas próprias administrações anteriores. O mesmo ocorre como o governo Petista em Brasília, parece-me que é uma tendência do PT em isolar-se no poder, sem o apoio das bandeiras que outrora eles ergueram juntos e realizando alianças que terão um pesado ônus futuramente, sustentando-se em discursos e realizações de suas próprias gestões anteriores e que demonstram-se incapazes de se renovar ou indicar outro caminho. Assim está o PT atualmente, um partido que rompeu com o seu passado, amarrando movimentos sociais, buscou aliados que outrora eram opositores e não soube se renovar no campo da governabilidade, ou então, realizando soluções de médio e curto prazo na complexa máquina política de Brasília, onde os interesses é que são as prioridades.

O que ocorreu (embora seja muito cedo para se concluir algo) no domingo dia 15 de março foi uma manifestação de um setor da sociedade, em sua esmagadora maioria anti-PT não necessariamente pró-PSDB ou, outra sigla partidária que se demonstra insatisfeita com a atual administração do planalto. As pautas que foram levantadas é o objeto que devemos nos ater e verificar a suas viabilidades. Reafirmo novamente que não há espaço para intervenção militar. Não há até então espaço para um processo de impeachment (o que seria lamentável caso ocorra). Punição severa para políticos corruptos? Também quero, mas isso cabe ao judiciário, se as leis os beneficiam, torna-se necessário uma reforma nas leis penais (que convenhamos, é um horizonte distante). Reforma política? Urge ser de extrema necessidade, mas com essa bancada, creio que também seja um delírio. Privatizar a Petrobrás? Nunca! Never! É o discurso enraizado em nosso imaginário de que o que é privado funciona, e a administração pública é um fracasso, esquecendo que os maiores corruptores de nosso País advém da iniciativa privada e sua fome por lucro a todo o custo.

É notório também que a população que esteve nas ruas possui um discurso, consciente ou não, do que querem e desejam, bem oposta as manifestações que ocorreram em 2013 quando tínhamos múltiplas bandeiras e reivindicações. Aliás, os protestos de 2013 ensinaram muito bem para a direita como se faz manifestação. Onde está à esquerda neste momento no Brasil? Como em outros tempos e como em um filme repetido centena de vezes, fragmentada, rachada, em desacordo e por aí vai... Tão isoladas quanto o PT. Embora a passeata ocorrida na sexta-feira dia 13 de março, encabeçadas pelo MTST, pela CUT, marcaram sua presença em prol da democracia, porém, existe ainda uma resistência muito grande por boa parte da população quanto as pautas da esquerda.

Não dá para desconsiderar – embora particularmente discorde, portanto resguardo-me do direito de não participar – o caráter das manifestações que tomaram corpo nas ruas das cidades brasileiras neste domingo. Mas também não dá para jogar confete e serpentina quando se atesta dentro destas manifestações um discurso raivoso, sectário, autoritário e que possuí nas entrelinhas um tom golpista, não pelas vozes das ruas, mas sim por interessados no circo pegando fogo. Não sei dizer e nem tenho essa pretensão e capacidade de dizer que esse movimento é um divisor de águas, apenas o tempo definirá isso. Torço para que essa polarização política que se instaurou em nossa sociedade – capazes de provocar brigas familiares e na seleção de quem devemos ter como amigos – se apazigue, que ocorra uma aproximação com diálogo e propostas, respeitando os resultados de pleitos democráticos. Como dizia um professor brincalhão “explicar a história do Brasil é fácil: é golpe atrás de golpe!” Espero que esse período de plena democracia, o maior que tivemos até então em nossa república, supere essa máxima.    

domingo, 15 de março de 2015

Não sou inofensivo

Alexander Martins Vianna
"Manifestação pacífica" não é manifestação, é farsa... É somente festa cívica, no pior sentido do termo – aprendemos isso com as ditaduras do passado, civis e/ou militares. Esta ânsia de a grande mídia corporativa televisionada pretender normatizar manifestações como "pacíficas" é de uma miopia histórica característica do liberalismo (o atual, que é status quo, que não é mais nem reformista, nem revolucionário, que se acredita no “Fim da História”). Qual parte da Revolução Francesa gostar-se-ia, hoje, de lembrar? Talvez nenhuma... Tudo isso é tão sintomático da domesticação dos problemas públicos!...

No liberalismo, o direito à propriedade precede o direito à sobrevivência. A propriedade é o mantra sagrado, embora a sacralidade seja socialmente seletiva: na casa do rico, só com mandado de segurança a polícia federal entra; na casa do pobre, particularmente na favela, a invasão sem cerimônia da PM (e o exterminismo racista de milícias) demonstra os limites sociais da vivência dos direitos formais liberais. E, durante a atual recessão, o estado opta por investir em saúde financeira monetarista para salvar especuladores financeiros com nossos impostos, mas é "vandalismo" atacar bancos... Não é ação política de protesto. É apenas vandalismo de oportunistas. Não há outra opção de sentido. É vandalismo e pronto!...

A questão é saber o que se "manifesta" como aceitável pela grande mídia na "festa cívica", o que se afirma, o que se silencia, o que se salienta, frente aos tantos partidos “trava-pauta” e sindicatos que se vendem fáceis, barganhando governabilidade e achando que somos todos estrumes. Como as bruxas ibéricas do passado, a minha mãe usa muito “estrume” na fala quando está irritada e se sente impotente. Sabemos disso: na maioria dos usos sociais que não envolvem ofensa verbal direta, o palavrão é um desabafo de impotência. A estrutura estritamente liberal de representação política no Brasil está falindo e conta com nossa síndrome de impotência “vira-lata” para manter o status quo – a menos que o “vira-lata” reaprenda a morder, em vez de apenas ladrar e viver de sobras... Por isso, insisto: É necessária a reforma política! Não sou cardume! É bom que saibam disso!

Manifestação não é para ser inofensiva. Se não é para incomodar, é melhor nem se fazer... Mas se é para incomodar, é bom que haja agenda clara e estratégias bem montadas de mobilização e sensibilização coletiva para além da “classe média”. Mas atentemos para isso: o nosso "estado de direito" tem adorado – com seu judiciário politicamente elitista, alienado e domesticado – criminalizar protestos e fazer presos políticos. Desconfiem de tudo que parece tão simples no enunciado midiático de qualquer dos lados da arena política! Como são cansativos os chavões de lideranças sindicais que domesticam "festas cívicas" para que caibam no “padrão Globo de qualidade”!

Aqui não faço incitação ao ódio, mas ao bom senso! Há muitos “donos de gado” por aí querendo ampliar seu pasto e acham que somos estrumes para fertilizá-lo. A grande mídia não nos mobiliza contra a violência estrutural, mas adora dramatizar a violência subjetiva. Rende mais anunciantes no “horário nobre”. Como é fácil cair nesta armadilha que esvazia nossa atenção da violência estrutural que massacra, sem alarido, a vida coletiva! Eis, agora, a austeridade econômica na Educação e na Saúde, depois de desperdiçadoras obras Olímpicas... Isso é um soco bem dado na cara de todos, mas vândalo é quem quebra banco...
*
Dedico este desabafo aos meus pais, moradores de São João de Meriti (Baixada Fluminense), vilipendiados quando precisam de serviço médico público digno.

sábado, 14 de março de 2015

De Getúlio a Dilma: Petrobrás e golpe

Ricardo Artur Fitz
Este texto não é um texto acadêmico. Nem foi concebido para sê-lo. Ele é resultado de preocupações e consequentes reflexões sobre o atual momento brasileiro, em que pese duas questões centrais: a evidente construção de um clima pré-golpe e a questão que está levando ao esgotamento da Petrobrás, numa clara tentativa de privatizá-la e, particularmente, internacionalizar o pré-sal. Obviamente é impreciso e mesmo falso examinar os eventos históricos a partir de uma monocausalidade. Mais impreciso ainda seria atribuir à questão do petróleo e da Petrobrás uma relação direta de causa e efeito com os eventos e, em particular com as crises políticas. A realidade é muito mais complexa. A preocupação é “juntando as peças”, tentar ver como elas se articulam. É certo que no texto existem muitas lacunas e omissões e é possível que haja imperfeições, também é certo que trata de forma superficial uma questão muito complexa, mas acredito que, como um todo, ele é coerente, preocupantemente coerente. Repito: não é um texto acadêmico, mas penso que vale como reflexão.

Negação ao Petróleo
A trajetória do petróleo no Brasil começa já no século XIX. Em 1892 foi feita uma prospecção e perfurado um poço de 488 metros de profundidade em Bofete (SP). Os resultados, porém, revelaram apenas água sulfurosa.

Em 1930 o engenheiro Manoel Inácio Bastos, ao ouvir falar de uma “lama preta” usada como combustível pelos moradores de Lobato, na Bahia chama a atenção das autoridades para a possível existência de petróleo na região. Bastos é desacreditado, chamado de “maníaco”. Iniciava-se uma campanha que negava a existência de petróleo no Brasil. Esta campanha iria se estender por um bom tempo no Brasil. Havia interesse por parte de grupos estrangeiros que forneciam combustível ao Brasil que não se fizesse exploração de petróleo no país.

Cinco anos depois, Monteiro Lobato (o sobrenome do escritor e a região da Bahia são apenas coincidência) passa a advogar publicamente a questão da prospecção e exploração de petróleo no Brasil. Envia duas cartas ao presidente Getúlio Vargas. Na primeira se refere às “manobras da Standard Oil para senhorear-se das nossas melhores terras potencialmente petrolíferas”. Casualmente, a subsidiária brasileira da Standard Oil, a Esso Brasileira de Petróleo, irá patrocinar, alguns anos depois, a partir de 1941, o mais famoso noticiário da época: o “Repórter Esso”.

Monteiro Lobato e o petróleo

Na segunda carta, após uma audiência com Getúlio, em que este aparentemente se comprometeu a criar por decreto a Cia Petróleos do Brasil, Monteiro Lobato denuncia as pressões para que o decreto não se concretize: “há alguém interessado em embaraçar a ação da Cia Petróleos do Brasil, dificultando a obtenção da autorização para que ela siga seu curso natural”. E segue afirmando: “há gente paga por estrangeiros para que o Brasil não tenha nunca o seu petróleo. Em vez de, pelas funções de seus cargos, esses homens tudo fazerem para que tenhamos petróleo, quanto antes, tudo fazem para que não o tenhamos nunca.”

Em 1936 Monteiro Lobato publica “O escândalo do petróleo no Brasil”. Neste texto, acusa o governo de não perfurar, nem deixar que se perfure.O livro foi sucesso editorial. Em menos de um mês, esgotou-se a edição do livro (5 mil exemplares). Logo em seguida sai uma segunda edição, que também se esgota rapidamente (ao todo foram lançadas 10 edições). Incomodado com o teor das críticas o governo de Getúlio manda recolher todas as edições.

Em 1938, finalmente é criado o Conselho Nacional do Petróleo. O CNP também não avançou muito nas questões relativas à prospecção e extração do petróleo.
No ano seguinte, novas críticas de Lobato à burocracia e a integrantes do governo, que dificultavam o desenvolvimento de uma política de petróleo no Brasil,levaram-no à prisão, sob a acusação de ser “subversivo e desrespeitoso”. Foi condenado a uma pena de seis meses, mas a mobilização de intelectuais brasileiros conseguiu que fosse indultado e Monteiro Lobato passou “apenas” três meses no Presídio Tiradentes.

Já há algum tempo vinha acontecendo uma campanha de desmoralização de Monteiro Lobato. Em 1933 publicara História do Mundo para crianças que foi alvo de censura e perseguição pela Igreja. O padre Sales Brasil escreveu um libelo intitulado A literatura infantil de Monteiro Lobato ou comunismo para crianças. Esta campanha ainda se estendeu por longo tempo: “ a edição de 1958, das Edições Paulinas, traz cartas de apoio que vêm do Vaticano e um prefácio que clama como vinda desde 1936 a queixa contra ‘os grande males que poderiam advir, para fé e a educação cristã das crianças, da leitura das últimas obras de Monteiro Lobato’.”[1]

Em 1939 é encontrado petróleo em Lobato, cuja exploração não era economicamente viável,  e em 1941 ocorre a primeira extração comercial no município de Candeias, na Bahia. O aproveitamento deste recurso e a ampliação da prospecção e extração ocorreram muito lentamente. Não se faziam investimentos significativos.

O final do estado Novo viu surgir uma intensa disputa entre grupos políticos que foram denominados de ”nacionalistas” e “entreguistas”. Enquanto os primeiros advogavam a causa do fortalecimento da economia legitimamente nacional, os segundos representados politicamente pela União Democrática Nacional (UDN) e pela grande imprensa, defendiam o ingresso de capital externo no país. No que se refere ao petróleo, isso significava atrair as grandes petroleiras estrangeiras (principalmente americanas) ao Brasil. No governo Dutra essa disputa se torna ainda mais acirrada, inclusive nos círculos militares.

Movimentos sociais: “O Petróleo é Nosso”
Em 1946 (mesmo ano da promulgação da nova Constituição) é lançada oficialmente a campanha “O petróleo é nosso”, tendo à frente a UNE, sindicalistas, o Partido Comunista, alguns militares, além de individualidades políticas. Obviamente, havia uma identidade com o grupo dos “nacionalistas”.  A campanha “O petróleo é nosso” defendia o monopólio estatal do petróleo. Eram promovidos encontros, comícios, alguns de grandes proporções. A campanha ganhou as ruas e acabou por se transformar em uma das maiores mobilizações populares da história do Brasil.

Manifestação em prol do monopólio do petróleo no Brasil promovida pelo Centro de Estudos e Defesa do Petróleo e da Economia Nacional (CEDPEN) em 1948. Ao fundo, painel com retrato do ex-presidente Artur Bernardes que também defendia essa tese.

Getúlio, agora no início da era populista e em meio à disputa entre “entreguistas” e “nacionalistas”, encampa a ideia. Em 1951 enviou ao Congresso um projeto de lei com o objetivo de estatizar e monopolizar a exploração e distribuição de petróleo no Brasil. Isto desagradou profundamente o governo norte-americano e, ato contínuo, convida o governo brasileiro a mandar tropas à Guerra da Coréia (1950-1953). Era uma maneira de forçar Vargas a adotar um posicionamento no cenário político internacional. Vargas, por seu turno, para firmar posição, recusa o convite[2]. Abre-se uma crise com os Estados Unidos e com alguns setores militares brasileiros.

Essa crise vem acompanhada de tentativas de desestabilização de Getúlio em diversas frentes. Ainda assim, em 1953, a mobilização popular em torno de “O petróleo é nosso”, levou o Congresso a aprovar a criação da Petrobrás, que detinha o monopólio da exploração, refino e distribuição de petróleo no Brasil.

No ano seguinte a desestabilização do governo de Getúlio ganhou proporções enormes, conduzida principalmente pela UDN, por setores militares e da classe média, empresários e pela grande imprensa. Destacava-se a figura de Carlos Lacerda, apelidado de “O Corvo”, proprietário do jornal Tribuna da Imprensa. Em agosto de 1954 é dado o golpe. Militares exigem a renúncia de Vargas que se suicida, neutralizando assim o golpe de estado.

Símbolo da resistência ao capital estrangeiro
A Petrobrás sobreviveu. Sobreviveu e se tornou um símbolo da resistência ao grande capital internacional e à evasão de riquezas do Brasil para o exterior.

Timidamente a Petrobrás começa a produzir comercialmente na década de1960,ganhando grande impulso na década de 1970 (durante a ditadura militar), como resposta à crise do petróleo de 1973, a criação a OPEP e a monumental alta do petróleo no mercado internacional.

Em 1974 é descoberto petróleo na Bacia de Campos (litoral do estado do RJ) mais especificamente no campo de Garoupa. No ano seguinte o governo federal autoriza a participação de empresas estrangeiras na prospecção, mediante contratos de risco, mas a exploração continuava a cargo da Petrobrás. Em 1977 entra em operação o Campo de Enchova.

Daí em diante a Petrobrás ganha um impulso considerável. Em 1984 é descoberto o campo gigante de Albacora, no ano seguinte o campo gigante de Marlim, ambos na Bacia de Campos. Agora a Petrobrás passa a investir também pesadamente no desenvolvimento de tecnologia. Em 1994 começa a operar a primeira plataforma semissubmersível (P-18) totalmente desenvolvida pelos técnicos da Petrobras – portanto com tecnologia brasileira -, no Campo de Marlim, na Bacia de Campos (RJ). O aperfeiçoamento tecnológico passou a ser uma das marcas da empresa. Em 1996 é encontrado mais um campo gigante na Bacia de Campos: o Campo de Rocador.

A viabilidade de exploração de petróleo no Brasil e a capacidade de fazê-lo, com tecnologia nacional em uma empresa estatal que crescia vertiginosamente, ficou plenamente demonstrada. Mas, os entreguistas não se entregaram.Em 1994 Fernando Henrique Cardoso foi eleito presidente. No mesmo ano, ainda antes de assumir, FHC fez um discurso no congresso intitulado O fim da Era Vargas, que começava dizendo:“Levamos a cabo a tarefa da transição. Olhando para trás, revendo os obstáculos vencidos, podemos dizer a nós mesmos e ao País, sem jactância, mas com satisfação: missão cumprida.”

De fato, a missão estava apenas começando. Fernando Henrique deu inicio a um grande projeto de privatizações das estatais. No que diz respeito à Petrobrás, iniciou o processo de privatização da mesma, quebrando, com o apoio do Congresso, o monopólio estatal da produção de petróleo em 1997, o que foi saudado entusiasticamente pela grande imprensa brasileira. Nessa ocasião, a Petrobrás já era a terceira maior empresa da América Latina.

Simultaneamente, abriu o capital da empresa para investidores estrangeiros, propiciando a entrada da Petrobrás na Bolsa de Valores de Nova York. As consequências disso se estenderiam ao longo do tempo. Em 2002 - devido aos escândalos e fraudes financeiras e contábeis de grande corporações americanas, como a Enron, Xerox, Worldcom eoutras - foi promulgada nos Estados Unidos a Lei Sarbanes-Oxley, conhecida por Lei SOx. Agora, a maior empresa brasileira se torna obrigada a submeter-se às autoridades norte-americanas, por força de lei (também americana).

Ainda em 1997 foi implementado o modelo de exploração por concessão. Com a lei, o petróleo e o gás passariam a ser propriedade privada das empresas que o exploram. O petróleo só pertence à União antes de sua exploração.

Petrobrax
Mas a coisa não para por aí. No final do ano 2000, o presidente da Petrobrás, Philippe Reischtul, anunciou para o ano seguinte a mudança do nome da Petrobrás para Petrobrax, com o objetivo de facilitar o processo de internacionalização da empresa. Justificava o ato explicando que a terminação brás, no nome, a identificava com a ineficiência das estatais. A ineficiente Petrobrás tinha uma receita de 69,2 bilhões em 2002 e em 2012 esta ineficiente empresa estatal que, – não custa lembrar – havia se tornado a maior empresa brasileira e a terceira da América Latina ampliou sua receita para 281,3 bilhões de reais, com lucro líquido de 5 bilhões de reais por trimestre (2014).

Também cabe lembrar que na época a grande imprensa alardeava de forma uníssona que as estatais eram ineficientes por serem estatais, apesar de os balanços de empresas como a Companhia Siderúrgica Nacional, a Vale do Rio Doce (privatizada escandalosamente abaixo do seu valor real) e o Banco do Brasil mostrarem exatamente o contrário. O discurso da ineficiência das estatais era a justificativa para a transferência de empresas altamente lucrativas para mão privadas, estas freqüentemente de capital transnacional.

Pois bem, apesar de contratar uma empresa, a Und SC Ltda, para fazer a nova logomarca, sem licitação (a lei de 1997 o permitia), ao custo de R$ 700.000,00 à época, a Petrobrás continuou sendo Petrobrás. Cabe ainda salientar que o custo total do processo de transição ficou orçado em 50 milhões de reais. Veja matéria sobre o anúncio da Petrobrax.  

O presidente da Petrobras, Philippe Reischtul, em frente ao novo logotipo da empresa

Wikileaks
Em 2006 a Petrobrás anunciou a descoberta de petróleo no pré-sal, a profundidades que vão de 5 a 7 mil metros abaixo do nível do mar, com possibilidades de ser a maior reserva de petróleo do mundo.A partir daí, mais do que nunca, os olhos e os tentáculos das grandes petroleiras voltaram-se para o Brasil e para a Petrobrás. Não se poderia deixar tamanha riqueza nas mãos de uma estatal de um país emergente, e ainda por cima governado por um partido de centro-esquerda.

Em dezembro, após as eleições presidenciais daquele ano, foram revelados pelo Wikileaks, do ex-agente americano da NSA, Edward Snowden, cinco telegramas enviados pelo consulado norte-americano a Washington envolvendo a questão do pré-sal. - A cônsul norte-americana no rio de Janeiro, Elizabeth Lee Martinez se refere ao pré-sal como “uma nova e excitante descoberta” e uma “oportunidade de ouro” para as empresas americanas. Um dos telegramas, bastante extenso, levou o sugestivo título de A indústria do petróleo vai conseguir combater a lei do pré-sal? É uma referência direta à lei que define a Petrobrás como operadora única do pré-sal e as outras empresas (coisas da lei de 1997), em regime de partilha, deveriam entregar ao menos 30% do que for explorado à União. Snowden revelou ainda que nos telegramas que a diretora de relações governamentais da Chevron, Patrícia Pradal, teria dito que o candidato tucano José Serra “teria mudado as regras”, caso fosse eleito presidente nas eleições daquele ano. Já para “a diretora de relações internacionais da Exxon Mobile, Carla Lacerda, a Petrobrás terá todo o controle sobre a compra de equipamentos, tecnologia e contratação de pessoal, o que poderia prejudicar os fornecedores americanos.”

O fato é que José Serra não conseguiu mudar as regras porque não foi eleito. Apesar da intensa campanha contra o presidente Lula e as tentativas de desestabilização de seu governo, tendo como pano de fundo a questão do “mensalão” (que não cabe examinar aqui), Lula elege seu sucessor, ou melhor, sucessora: Dilma Rousseff. Ora, Dilma havia sido justamente ministra de Minas e Energia no segundo governo Lula e tinha uma cadeira no Conselho de Administração da Petrobrás. Era, portanto, alguém que conhecia a questão.

A refinaria de Pasadena
Nisto se encaixa a complexa questão da compra da refinaria de Pasadena, na Califórnia. Em 2004 a antiga Refinaria Crown estava praticamente falida, com uma dívida milionária (em 1998 chegou a ter um prejuízo de 829,4 milhões de dólares), quando foi comprada pela Astra Oil. A Astra pagou uma inexpressiva quantia pela refinaria: US$45,2 milhões pela refinaria e seus estoques de petróleo, mas assumiu uma dívida de US$ 300 milhões e investiu mais US$ 100 milhões para poder pô-la em operação.

Em 2006, ainda antes da descoberta do pré-sal, antes da construção da Refinaria Potiguar Clara Camarão e antes da crise de 2008 nos USA, a Petrobrás compra 50% das ações da Astra Oil. Naquela ocasião, foram pagos US$ 190 milhões pela refinaria e US$ 170 milhões pela reserva de estoque da refinaria. Um desentendimento entre as duas parceiras (a capacidade de investimentos da Petrobrás na refinaria era maior do que a Astra Oil pretendia investir) chegou à justiça americana. Em 2010 a Corte Federal de Houston determina que a Petrobrás compre os restantes 50% da refinaria. Num acordo extra-judicial, a refinaria é comprada em 2012. A Petrobrás esclarece que no total, “foram desembolsados US$ 554 milhões com a compra de 100% das ações da PRSI-Refinaria e US$ 341 milhões por 100% das quotas da companhia de trading (comercializadora de petróleo e derivados ), totalizando US$ 895 milhões. Adicionalmente, houve o gasto de US$ 354 milhões com juros, empréstimos e garantias, despesas legais e complemento do acordo com a Astra. Desta forma, o total desembolsado com o negócio Pasadena foi de US$ 1,249 bilhão.” As negociações foram conduzidas por Nestor Cerveró e Paulo Roberto Costa.

O fato é que a Petrobrás foi francamente prejudicada pela justiça norte-americana, primeiro, e pelos valores arbitrados, depois.

Operação lava-jato
Em março de 2014. A Polícia Federal, investigando as operações de lavagem de dinheiro do doleiro Alberto Youssef (Operação Lava-Jato), chegou a Paulo Roberto Costa, que fora diretor da Petrobrás até 2012. Paulo Roberto Costa, engenheiro mecânico, era funcionário de carreira desde 1978. Desde 1995, durante o governo Fernando Henrique, Costa teve cargos de direção na empresa. Por indicação do próprio presidente, tornou-se diretor da Gaspetro e depois Diretor de Abastecimento da Petrobrás. No atual governo, era indicação do PP. Dele dependia a aprovação para a construção de gasodutos, refinarias, plataformas, etc.

Paulo Roberto Costa utilizava-se de Youssef para lavar dinheiro que era fruto de propina paga por grandes empreiteiras. A PF já apreendeu mais de 700 milhões de reais desse dinheiro. As grandes empreiteiras (OAS, Queiroz Galvão, Mendes Júnior, Galvão Engenharia, IESA Óleo e Gás, Engevis, UTC, Camargo Correa) atuavam de forma cartelizada, sobrefaturando preços. Para poder agir livremente, pagavam propina a Costa.

Nestor Cerveró curiosamente também tem cargos de diretoria na Petrobrás desde 1995, sob o governo Fernando Henrique. Cerveró é acusado de ter recebido 15 milhões de dólares de propina do Estaleiro Samsung Heavy Industries da Coréia do Sul para comprar um navio para a Petrobrás.

A grande imprensa fez e ainda faz sobre essa questão um alarde extraordinário. Não que não merecessem destaque. Mas confundiu-se a atuação individual de pessoas corruptas com a instituição Petrobrás e com o governo. O que deveria ser um caso de polícia é usado para forjar uma crise política. O objetivo parece evidente: desacreditar a Petrobrás e atingir a Presidente Dilma, que, em 2006 era do Conselho de Administração da empresa. Fabricam-se crises políticas a partir de atos individuais. Em uma orquestração envolvendo o grande capital internacional e interesses nacionais mesquinhos, articula-se a desestabilização do governo e articula-se um golpe. 

Moody’s
Na última semana de fevereiro deste ano, a agência de classificação de risco Moody’s rebaixou a nota da Petrobrás para grau especulativo. Com isso, as ações da empresa despencaram. A Petrobrás não está quebrando. Estão tentando quebra-la, ou pelo menos enfraquecê-la para privatizá-la e internacionalizar seu capital. Para isso é necessário também a desestabilização política.

Aqui, os entreguistas (que por acaso também são os que articulam a desestabilização política) continuam na ativa. O senador Aloysio Nunes (PSDB-SP), um dos mais ferozes, apresentou um projeto (PLS 214/2014) para acabar com o sistema de partilha na exploração do pré-sal. Na prática, isto significa abrir a exploração do pré-sal para as grandes corporações estrangeiras.

A quem interessa a crise? Quando os governos não correspondem aos interesses dos poderosos, esses governos devem cair. Os golpes, hoje, tendem a ser “golpes brancos”, com menor uso da força, geralmente numa atuação conjunta do judiciário, imprensa e setores conservadores do parlamento.

Os exemplos estão aí: Manuel Zelaya, Honduras (2009), acusado de “desobedecer leis”; Fernando Lugo, Paraguai (2012), acusado de “mau desempenho”. Em ambos os casos fabricou-se uma crise política que levou a uma desestabilização e a derrubada do poder. Em outros casos as tentativas de desestabilização ainda não surtiram efeito: Rafael Correa no Equador, Hugo Chaves e Nicolás Maduro na Venezuela, Cristina Kirchner na Argentina e, Lula e Dilma no Brasil.

No nosso país os velhos entreguistas continuam vivos. Os herdeiros da UDN e de Carlos Lacerda estão aí, abrigados em novas siglas, preparados para dar o bote. O faminto capital internacional saliva diante da Petrobrás.

É necessário que todo cidadão consciente assuma a luta pela Petrobrás e reúna toda a foça que puder para evitar o golpe.

Notas
[1] Eliana Yunes em entrevista concedida a IHU on-line. Disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2374&secao=284
[2]http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas2/artigos/EleVoltou/PoliticaExterna

segunda-feira, 2 de março de 2015

Oração da educação de tempo integral

Alexander Martins Vianna
Uma educação de tempo integral significa uma outra concepção de escola. Entre outras coisas, trazer para dentro dela atividades que, atualmente, a classe média apertadamente consegue dar aos seus filhos, mas não a maioria da população. A educação de tempo integral não é prisão. Quem disse que os espaços de descobertas e liberdade não podem ser as escolas? Afinal, é um lugar de encontros de múltiplos horizontes, experiências e paradigmas. O problema é que há professores que estão pensando este assunto de forma antiga: a partir da experiência ruim do que existe hoje nas escolas, em vez de projetarem novos horizontes de expectativas para as suas práticas profissionais e para os espaços de experiências de trabalho.

O fato social que não podemos esquecer é que a escola de quatro horas é socialmente excludente: demanda uma presença de família e recursos materiais na família que faltam à maioria da população. E supor que numa sociedade urbano-industrial a preparação para a vida adulta está completamente na mão da família me faz pensar numa visão muito aristocrática, “à la Ancien Régime”, na forma de pensar o processo educacional como algo eminentemente doméstico e/ou vicinal-corporativo. Uma educação de tempo integral é fundamental para provocarmos algum nivelamento nos pontos de partidas de nossas crianças.

Uma escola de quatro horas pressupõe famílias e recursos de classe média que supram o que, na prática, a escola deveria oferecer, considerando a carga de impostos que pagamos. Uma escola de quatro horas exige empregada, babá, creche, vizinha, sogra, cunhada ou que simplesmente um dos cônjuges (geralmente a "mulher") não trabalhe, ou trabalhe meio-expediente, sendo apenas "renda complementar" (i.e., sem soberania financeira), para que haja alguém para estar com as crianças quando ambos os pais não podem. E sabemos que muitas crianças nas escolas públicas atuais não contam com ambos os pais na rotina doméstica – muitas são criadas por avós. Parece que, até o momento, quem é contra a educação de tempo integral está pensando a escola apenas como um sistema prisional. É um erro de concepção. Este não pode ser o parâmetro para se pensar a educação de tempo integral.

A educação de tempo integral é mais do que ampliar horário de permanência de professor e aluno na escola. Para ser viável, toda a estrutura escolar do Brasil deve mudar, tanto a forma de conceber a integração de atividades na escola quanto o próprio espaço escolar, a carreira docente e a sua forma de ocupação de carga horária, de modo que seu trabalho na escola não seja apenas "dar aula" em turmas superlotadas, ou se fazer com que trabalhar numa escola se torne um sistema prisional disfarçado. A educação de tempo integral exige produção acadêmica dos docentes, ou seja, tempo para refletir, estudar e produzir sobre suas práticas localizadas na escola, devendo tudo isso ser contado em sua carga horária.

A educação de tempo integral demanda saídas programadas e guiadas do espaço escolar – trabalhos de campo – para vivências desafiadoras, práticas ou aplicáveis de algumas formas escolarizadas de saberes; ou a possibilidade da fruição de exposições de arte ou de outra natureza, por exemplo, que um professor poderia incluir “como cotas de eventos” em sua programação como atividade extraclasse de seus alunos, mas integrada a processos ou objetivos pedagógicos de sua área de saber. Afinal, de que adianta, por exemplo, uma “aula de arte” sem fruição de espaços de arte para além da escola? Portanto, a educação de tempo integral demanda a integração de processos, tempos e espaços de um modo organicamente estruturado com a reformulação da carreira docente, de modo que o trabalho efetivo de preparação para a integração de processos esteja contabilizado em sua carga horária. Isso seria fundamental para que a prática atual – isolada e assistemática – de alguns docentes deixasse de ser improvisada ou uma batalha constante contra uma estrutura ingrata, para se tornar, efetivamente, parte da rotina escolar e de sua carga horária. Afinal, tudo isso exige preparação, tempo e estudo.

Para que a educação de tempo integral seja viável, o docente do ensino básico precisa de um plano de carreira, progressões, responsabilidades, sistemas de aferição de mérito e exigências análogas àquelas dos professores universitários das instituições federais. Portanto, não pode haver superlotação de turmas, mas sim um teto de orientação educacional por professor. A educação de tempo integral é cara e necessária, feita por profissionais caros, qualificados e adequadamente responsabilizados pelo resultado de seus trabalhos. Investir nisso é mais socialmente lucrativo do que salvar banqueiros, sustentar a corrupção ou manter benesses exorbitantes para os “representantes” políticos da população e os togados do judiciário, que se comportam como casta num país tão desigual e socialmente violento.

Para que a educação de tempo integral seja viável, a escola não pode ser precarizada, nem seu docente, nem sua carreira; não deve haver superlotação de turmas, mas uma relação qualitativa de acompanhamento de discentes por docentes, o que torna a condição de D.E. uma possibilidade lógica deste tipo de carreira. Propostas que não ornem com isso serão simples adaptações à precariedade preexistente, mas com um novo desenho de carga horária docente. Isso seria mais uma mentira institucionalizada, como tantas que andam por aí neste país de fábulas olímpicas. A escola deve valorizar as áreas de formação de seus docentes, em vez de diluí-las em generalidades que não dialogam com os centros de formação de ondem vieram, de modo a ampliar o diálogo efetivo entre produção universitária e produção escolar.

Definitivamente, educação de tempo integral não é isso que se tem vinculado nos debates que tenho observado nas redes sociais, com professores desistindo da ideia porque tem sido mal concebida e/ou mal debatida pelas secretarias de educação e sindicatos. Então, penso que os professores do ensino básico precisam de uma reflexão de carreira mais séria; que isso seja encampado efetivamente pelos seus sindicatos. Isso não pode ser feito a partir do que já existe, pois o que existe não funciona, precariza, adoece e mata nossos docentes – ou torna cínicos e céticos adaptados os muitos sobreviventes desta “máquina de moer ossos”. Precisamos construir novos horizontes de carreiras, responsabilidades, espaços e dinâmicas escolares; precisamos que isso seja política de estado e não de partido; precisamos que os sindicatos representem os professores nisso – que não sejam apenas sucursais de agendas de partidos políticos.

Os argumentos que tenho ouvido de alguns docentes são bem sintomáticos da violência estrutural a que estão submetidos: esvaziam a si mesmos como protagonistas do processo, empurrando-se para argumentos céticos, ou em chave de destino (o "Brasil é assim mesmo", o "no Brasil tudo muda para ficar do mesmo jeito", etc). Imaginem o tipo de prejuízo ético de longo prazo que temos ao vermos nossos professores passando esta carga de sentimento e entendimento sobre o país para seus alunos – é a tacanha “síndrome de vira-lata”, tão adequada à manutenção do status quo.

Ora, tudo isso serve apenas para reproduzir o ethos de cético-cínico, ou de mundo como destino em nossos professores – ambos os humores implicam apenas em adaptação à precariedade, como se as escolas se tornassem versões atenuadas de campos de concentração. É próprio do argumento utópico moderno provocar o olhar para além da necessidade imediata. Quem apenas se mede pela necessidade imediata, opera com ethos de sobrevivente ou de “bicho”. Por quanto tempo alguns considerarão isso suportável? Tanta violência estrutural se inscreve em seus corpos e mentes, mas é possível ir além disso – não se deixar reduzir a “bicho”. Espero que ouçam isto sem pressa. As palavras não visam a ofender, mas sim a explicitar o que me parece ser uma lógica social e comportamental que nos impomos e que ratifica as estruturas de poder, que querem justamente que não nos vejamos como protagonistas válidos na sociedade e em nossa carreira.

Quando falo em educação de tempo integral não falo do que existe ainda. O que efetivamente existe os professores já conhecem e sofrem. Falo do que precisa ser feito. Pensar para além da necessidade imediata é próprio do pensamento utópico-diatópico – que é o avesso do ceticismo conservador ou do pessimismo de “vira-lata”. Os professores do Ensino Básico e seus sindicatos devem se tornar protagonistas desta discussão. Não podem olhar o problema de dentro da precariedade atual, mas colocarem a cabeça para fora e criar novos horizontes de reflexão. O debate não deve ser descartado, mas aperfeiçoado, com mais protagonismo propositivo dos docentes.

O que tenho observado, até agora, é apenas uma reação de negação ao que está sendo proposto pelo governo, mas não uma ação de reflexão pungente e consistente sobre uma alternativa de efetiva viabilização. A maioria está abordando o assunto a partir da precariedade preexistente, em vez de refletir sobre o tipo de precariedade que deve ser superado para que a educação de tempo integral seja concebida com efetiva integração de fatores e processos visando ao desenvolvimento humano. Precisamos ser ousados na reflexão e na proposta, não desistir da ideia somente porque está sendo mal concebida ou mal apresentada pelos agentes do governo. É disto que falo. Falar que é utopia (no sentido de impossível) é desistir sem lutar. Neste caso, o que resta é alarido, alarido cético ou com pretensões de destino, ou um melancólico e fétido silêncio de pântano.