quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Hipovalência social do docente no Ensino Básico

Alexander Martins Vianna
Falar de sintomas de “crise nas humanidades” no Brasil, usando exemplos de países desenvolvidos como os EUA, como se faz no artigo de Keila Grinberg para a revista Ciência Hoje, não aumenta em nada a informação sobre o tema no Brasil – que, aliás, teve uma expansão das licenciaturas, particularmente em Humanidades, entre 2002 e 2010. O tipo de paralelo feito em seu artigo é pouco consistente, impressionista (basta observar os recursos retóricos do texto) e não acrescenta nada à discussão sobre o assunto pretendido: 70% do seu artigo não leva a nenhuma reflexão crítica sobre a situação estrutural de empregos e nichos de trabalho no Brasil para bacharéis e licenciados em História. A impressão que tenho é que o artigo apenas "preenche pauta" de redação para a revista Ciência Hoje – um rito burocrático de pouco impacto social, tal como se tem feito com as metas produtivistas autorreferidas nos sistemas de avaliação de programas de pós-graduação no Brasil.

A situação de melhor empregabilidade e diversidade de nichos de trabalho para bacharéis e licenciados em História não se resolve simplesmente com a ampliação de pós-graduações profissionais em História, com a criação de disciplinas instrumentais sobre patrimônio histórico ou com o acréscimo de disciplinas de Relações Internacionais em cursos de História, ou com a ratificação social de parcerias de escrita professor/aluno para artigos em revistas acadêmicas de Humanidades. Isso é pensar o problema de um ponto de vista já comprometido, ou seja, de quem se coloca como “centro de oferta de saber” – i.e., o professor universitário das instituições públicas – e, no caso de quem escreve o artigo para a Ciência Hoje, ainda fico com a forte impressão de que o assunto é abordado e moldado para caber num ponto de vista legitimador da estrutura já existente na UNIRIO. Portanto, trata-se de uma fala comprometida apenas com a legitimação de um nicho institucional específico de trabalho – ou seja, não olha para além disso, o que explica a reação ao artigo no sítio da revista.

Em todo caso, o artigo gira apenas em torno de sintomas – mas não é ousado na (auto-)crítica. Ora, não se avança em hipóteses causais consistentes sobre tal assunto sem que o dedo indicador da crítica não esteja também acompanhado pelo polegar da responsabilização social. Nós temos um enorme déficit docente no Brasil, um déficit qualitativo, no seguinte sentido: a carreira docente tem sido concebida e praticada no sistema público do Ensino Básico com baixíssima valência social. As escolas empregam mais do que museus, centros de pesquisas e outros nichos externos à escola pública. Então, é fugir do problema pensar em outros campos de trabalho para o historiador (pós-graduado) que não a universidade sem antes combater por melhoraria nas valências social, política e intelectual do principal nicho de emprego dos historiadores graduados e pós-graduados que formamos: o Ensino Básico público.

Aliás, é impressionista e pouco consistente dizer categoricamente que a maioria dos historiadores com pós-graduação quer ser professor universitário. Quem já trabalha com ensino básico não tem apoio efetivo das secretarias de educação estaduais e municipais para ter formação continuada em pós-graduação, mas muitos gostariam de fazer a pós-graduação para voltar com tal experiência para suas escolas. As pós-graduações profissionais voltadas para tais professores abriram tal oportunidade, mas, paradoxalmente, se, por um lado, o governo federal libera bolsas para pós-graduação profissional, por outro lado, as secretarias estaduais e municipais de educação não liberam, estimulam ou apoiam os professores do Ensino Básico a buscar formação continuada em pós-graduação de qualquer espécie. Então, em larga medida, os poucos que ousam trilhar a pós-graduação se obrigam a rotinas hercúleas para manter as suas atividades na escola e na pós-graduação – rotinas que alguns professores universitários sequer sonhariam em manter em suas vidas.

O fato é que o principal nicho de emprego para nossos graduados e pós-graduados é concebido pelo poder público para massacrar e desestimular a busca pela formação continuada, além de emperrar, paradoxalmente, a plena aplicação de suas competências no espaço escolar. Então, não acredito que faltam competências em nossos graduados e pós-graduados para ensino de História. Fica completamente sem contexto pensar métodos e técnicas para “Ensino de...(qualquer coisa)” se o ambiente de trabalho é estruturalmente hostil à sua prática e formação intelectuais. Sempre fico aborrecido com professores universitários de “Ensino de...” que pensam em fórmulas mirabolantes para ensino, mas se alienam do ambiente efetivo que seus alunos terão para trabalho. No fundo, parece que o problema do Ensino se torna uma questão de competência técnica do indivíduo, havendo pouca reflexão filosófica sobre a natureza do pensamento histórico pretendido para a História Ensinada – reflexão que não pode ser panaceia para a adaptação à precariedade. O ambiente escolar socialmente hostil ao trabalho intelectual do docente precisa desaparecer para que a reflexão e a prática de ensino sejam frutíferas, caso contrário, “Ensino de...” vai se tornar “autoajuda” para os “mais esforçados” – e sabemos “que o vencedor vive só”...com suas batatas...

Penso que falta muito espaço social digno e retributivo para o trabalho intelectual que é ensinar – coisa que parece andar muito esquecida pelo poder público. Eu adoraria trabalhar no Ensino Básico – como já o fiz –, se este fosse efetivamente dignificante e intelectualmente retributivo. É sintoma de distorção estrutural o entendimento de que o magistério superior seja a única alternativa para uma relação dignificante e intelectualmente retributiva com o ensino e a pesquisa. A escola pode ser um grande laboratório; e muitos de nossos (pós-)graduados poderiam fazer brilhantes intervenções em tais espaços se não fossem tão precarizados e imbecilizados na forma de aferir responsabilidade e mérito escolar. Tal precarização cria problemas estruturais e éticos sérios, de longo prazo, no jogo da responsabilidade social contido neste tipo de trabalho.

Eu saberia perfeitamente ser professor do Ensino Básico e, ao mesmo tempo, transformar tal ambiente em objeto de estudo e promotor de métodos pedagógico em História – mas a estrutura escolar profissional efetiva não permite isso (muito raramente nos CAPs federais e IFs), o que torna uma hipocrisia institucionalizada a “PÁTRIA EDUCADORA” enfatizar pós-graduações profissionais ou licenciaturas que terão ótimos profissionais para atuarem num ambiente social hostil à sua formação: as escolas públicas municipais e estaduais do Brasil, com raríssimas exceções. Devemos nos perguntar por que a nossa estrutura de ensino público das esferas municipais e estaduais (o principal nicho de trabalho para os historiadores) se tornaram ambientes hostis ao trabalho e ao desenvolvimento intelectual do graduado e do pós-graduado de História. Por que nossos alunos, que saem das universidades cheios de sonhos e ideais, se tornam, em tal ambiente de trabalho, um animal doentio e hipovalente? Não se trata de um problema de responsabilidade individual apenas, mas de um problema estrutural que deve ser politicamente enfrentado, pois está evidente que não temos política de Estado séria e integrada para a Educação como um tudo.

Há uma “máquina de moer ossos” – para parafrasear o poeta e historiador Alberto Lins Caldas – que precisa ser contida: o fato de ainda formarmos bons alunos de História na Universidade Pública, mas estes serem destruídos física, social e moralmente por uma lógica estrutural de (des)trabalho que não acolhe a boa formação que a universidade pública ainda oferece, criando descontinuação ou falta de integração dos fatores de desenvolvimento humano – ou seja, desperdício de recursos materiais e imateriais. Os cursos de História (e demais licenciaturas, bacharelados e pós-graduações em Humanidades e Artes) perecerão em relevância social se o Ensino Básico (leia-se: o poder público) não mudar a valência social e intelectual de seus profissionais, com a reconfiguração da carreira e exigências de responsabilidades condizentes com tal reconfiguração, na qual a autonomia intelectual do docente não seja suprimida por sistemas de avaliações tecnicistas, imbecis e equivocados que não ponderam a necessidade de reformular o tempo na escola, a lógica de ocupação de turmas e a integração planejada de atividades quando se pensa numa forma de avaliação (e, portanto, num ponderador sociocultural de mérito).

Como um profissional de ensino poderá efetivamente se envolver com tanta responsabilidade se não estiver numa estrutura de D.E. que não implique em precarização, mas sim em efetiva viabilização de sua permanência qualificada nas escolas, entre aulas e projetos que efetivamente integrem a criação de processos educativos e produção (acadêmica e/ou técnica) em sua carga horária? O nosso horizonte deve ser a escola pública de tempo integral que respeite as áreas de formação acadêmica dos docentes, em que o sistema de avaliação, as turmas e as suas atividades integrem-se e correspondam-se com a natureza das áreas de conhecimento dos docentes.

É sintoma de precariedade de futuro um país manter seus docentes com uma identidade social e intelectual hipovalente. O professor universitário que não entrar neste combate também está inviabilizando o seu futuro profissional. Muitos precisam quebrar os seus espelhos de narciso, revolver a superfície d’água, redescobrir a lama, para perceberem as distorções e desintegrações estruturais em que vivem e trabalham. Não podemos continuar alienados das consequências. Não podemos nos acomodar à ideia de que já “demos a boa formação e o resto é com eles”. “Boa formação universitária” não reverbera se o principal nicho de trabalho de nossos alunos continuar hostil à sua prática e formação profissional-intelectual. Não podemos esquecer que Narciso morreu de inanição!... Se a estrutura de poder passar incólume na forma como esvazia socialmente a relevância do principal nicho de trabalho de nossos alunos de graduação e pós-graduação, nós também perderemos relevância. Os colegas de Letras sabem bem disso: Com o fim da obrigatoriedade do ensino de Literatura nas escolas públicas, muitos cursos de Letras do Brasil estão se tornando “cursos de línguas” (i.e., cursos de tecnólogos de línguas que não gostam de Literatura, em que Linguística se tornou um campo completamente distinto de Literatura – algo que seria muito estranho ao intelectual com o qual mais dialogam desde a década de 1970: Mikhail Bakhtin).

Pouco adianta refletir sobre métodos de ensino mirabolantes e pós-graduações profissionais, ou disciplinas instrumentais miraculosas nas graduações, se estamos formando nossos alunos para um ambiente hostil ao seu trabalho intelectual. Ensinar com qualidade significa um permanente trabalho intelectual, a valorização do tempo para estudo dos docentes – é lastimável e sintomático que tal truísmo tenha de ser dito às secretarias de educação municipais e estaduais do Brasil!... O professor do Ensino Básico não deveria precisar lutar pelo básico, ou deixar de receber salários, enquanto juízes e deputados recebem salários exorbitantes. Isso é uma vergonha nacional! O país entra em recessão e sacrifica médicos e professores! Portanto, ainda estamos muito atrasados para comparar nossos problemas com os norte-americanos. Nem nos aproximamos ainda dos Tigres Asiáticos... Estamos perdendo este bonde da História... E, embora história não seja destino, pode se tornar uma grande fábula no nosso “país do futuro” de presentes tão cruéis e precários...

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