segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

“Ovelhas, lobos e pastores”: o que quer o Sniper Americano?

Fabiana Mathias - COLUNA CINEPRÁXIS
[Texto sem spoilers]
Você já deve ter conversado com um amigo que falou por horas de um assunto que para ele parecia importante, foi, veio, mil reviravoltas, mas ao chegar ao final da conversa você não entende realmente qual era o drama, a aventura, a polêmica naquilo que ele lhe contou, restou, portanto, fazer uma cara de interessado e lançar no ar algo que ficou entre um grunhido “uhum” ou “bah, que coisa né?”, este jogando ao outro a responsabilidade por emendar o assunto com outros detalhes ou simplesmente ficar contente com sua surpresa, mesmo que seja ela falsa.

O filme Sniper Americano (2015), dirigido por Clint Eastwood, se mostra uma conversa vazia a qual do início ao fim você fica tentando entender a importância, a intenção, por que se gastou dinheiro com este filme, não é atoa que depois de três semanas entre os mais vistos nos cinemas dos EUA, foi superado por nada mais nada menos que Bob Esponja – um herói fora d´água.
 
Hollywood é muitas vezes uma máquina de propaganda do Estado ou como diz o filósofo Slavoj Žižek mais explicitamente “Hollywood é o aparelho ideológico do capitalismo”. Mas Sniper é com certeza um ponto de interrogação na tela: “qual a intenção deste filme?”. Que é uma propaganda pró militares, pró guerra, pró pensamento republicano isso fica claro, mas por que um diretor consagrado pela pluralidade de produções como Eastwood aceitou fazê-lo? Mesmo ele sendo republicano dá para desconfiar, afinal, Steven Spielberg antes dele desistiu de rodar o filme.
 
Podemos pensar como diz Bergan (2011), que se trata de um filme de “propaganda”, um filme em formato documental, disfarçado de drama que tenta transmitir uma suposta mensagem, entretanto, o mesmo autor lembra que essa propaganda, que passa a ideia de que a “câmera não mente” é usada para passar verdades pessoais, interesses políticos, como ele mostra usando os filmes de Leni Riefenstahl usados como propaganda nazista. Por outro lado podemos também considerar o filme meramente “escapista”, pois traz personagens simples, uma narrativa de fácil solução dramatúrgica onde o “herói” apenas age sem trazer problemas para o espectador pensar os “porquês”.
 
Sniper não é documental, sem dúvida que não, pois o cinema documental, quando usa a guerra como objeto de sua lente, tem sido importante para barrar o simplismo de ver a guerra como natural ao ser humano, obras como “Apocalypse Now”, de Francis Ford Coppola, “Que delícia de guerra!” de Richard Attenborough, “Vá e veja”, de Elem Klimov, este último excelente, entre outros, trazem a guerra como a própria desumanização.
 
Sniper continua a tradição de filmes que foi bastante alimentada nos anos 1980 em que um militar americano, sozinho ou com sua equipe, vão para territórios estrangeiros matam e destroem tudo que vem pela frente sem se importar, como se estivesse no quintal de suas casas, com a diferença mais perigosa ainda de que Sniper é biográfico. Talvez o trauma do fracasso no Vietnã tenha criado o personagem militar invencível, da década posterior à guerra, mostrados nestes filmes. Durante todos os 1980 assistimos insistentemente cenas em que um só soldado invadia um local cheio de militares inimigos e sozinho matava a todos, sem se ferir. Filmes como Rambo (1982, 1985 e 1988), em que John Rambo (Silvester Stallone), sozinho resgatou militares, destruiu exércitos, e ajudou, pasmem, o povo afegão durante a ocupação soviética, fizeram grande sucesso. Em Comandos para matar (1985), o personagem John Matrix (Arnold Schwarzenegger) invadia um fictício país da América Latina, para resgatar a filha matando todos que encontrava e destruindo tudo na sua frente afinal ele era americano. Em Comando Delta (1986), Major Scott McCoy (Chuck Norris) tentava resgatar os reféns de um avião sequestrado por árabes, assim, aleatoriamente que eles eram apresentados, mais uma vez os americanos eram chamados para salvar o mundo. Um mundo de clichês cinematográficos que serviam em 1980 e parecem servir também em 2015, quando Sniper mostra militares impiedosos com um propósito “justo” no território alheio.
 
Eastwood tenta humanizar o personagem Chris Kyle, o atirador sobre quem o filme trata, por isso usa sua relação com sua família pra construir essa imagem de “homem de bem” clássico do conservadorismo republicano, mas mesmo nisso ele peca já que a esposa do personagem é mostrada apenas como uma chorona chata, que lhe cobra presença e passa boa parte filme grávida ou então, com os filhos em sua volta. Nos anos 1980 as mulheres gritavam e eram burras, um peso para o “herói”, parece que nada mudou para Clint Eastwood. A esposa de Chris não é mostrada trabalhando, não possui amigos, nem família, é apenas um rosto perto do telefone ou da cama. Não existe um personagem ali.

O meio familiar é o único espaço onde Kyle deixa de ser o militar, embora mesmo em casa se vista como um. Esta é a única forma humana de verdade para além do cumpridor de ordens, mas não funciona como uma forma de se aproximar dele, criar empatia, se tenta servir para redimir este de mais de 160 mortes, já que a família sempre aparece após alguma cena de ação militar, é ineficiente. Pronto, com vergonha chego ao motivo dado pelos estúdios para acharem necessário filmar esta história. 

Sniper é a história do militar responsável por matar o maior número de pessoas em uma guerra em que os Estados Unidos esteve envolvido.
 
Talvez a intenção seja mesmo, que a população dos EUA, que vem passando por uma crescente fase de empobrecimento, uma população no limite desde os governos George Bush, leia como quiser o filme e, por fim, encontre o “inimigo”, o “culpado”, ou como diz o pai de Kyle, quem “deve ser curado do mal”.
 
Atualmente 13,6% da população dos EUA vivem abaixo da linha da pobreza. Em 2010 foram estimados 46,2 milhões de americanos na pobreza, o maior número no país após a Segunda Guerra Mundial.
 
Não é de hoje na história que a propaganda e o cinema serviram para buscar culpados, inimigos ou povos para serem curados de seus maus, “bodes expiatórios” enfim. Este ano faz 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial e não foi pequeno o arsenal de propaganda de convencimento anticomunista, antissemita, racialista  disseminado na época para justificar o mal que foi feito. Com o fim do governo Bush a aprovação da população para ações militares caiu vertiginosamente e aumentaram o número de escândalos sobre os desmandos das tropas no exterior, para reatar os laços da sociedade com o Estado militarista americano seria mesmo necessário reativar mitos, heróis, valores, dar motivos para que, esta que a maior fonte de crescimento econômico dos EUA, a indústria bélica, encontre um novo mercado.
 
Não pretendo dar spoilers, mas expor em elementos políticos e psicológicos o que o filme traz, até mesmo porque ao contrário dos filmes A conquista da honra e Cartas de Iwo Jima, filmes considerados antimilitaristas de Eastwood, este não tem a possibilidade de ser analisado sob outro viés.
 
Assim como o filme Tropa de Elite foi glorificado pelos motivos errados, pois era um filme que denunciava a situação da segurança brasileira, a pobreza, violência e a corrupção, mas acabou servindo muito mais como uma propaganda pró militarização da polícia, Sniper tenta ser mais uma hipnose americana de patriotismo.
 
O título deste artigo “Ovelhas, lobos e pastores”, vem de uma fala inicial do filme, vale a pena ver que ali, e só ali, o personagem que a reproduz, o pai de Chris, em suas falas bem como suas ações, é mostrado com um americano insano, com seu sotaque forte, sua dominação patriarcal, sua frieza, um sulista, (olha que inovador, sempre só o sul do país é tido como historicamente incoerente no cinema), é mostrado como um homem violento, todos os outros que matam, agridem, ensinam a agredir tem um “propósito maior”.
 
Outro fato que chama atenção é a repetição de frases clichê como “cumprir ordens”, “pela pátria e família”, que parecem destoar, ficam mecânicas na tela, quase patéticas de se ouvir. Suponho que elas sejam de uso comum no mundo militar, mas mesmo assim não funcionam mais como antes pelo próprio vazio político que possuem.
 
A escolha - nem tão escolha assim, já que ele é produtor do filme - do ator Bradley Cooper, para o papel do atirador Chris Kyle é, por um lado, bem pensada, pois ele é um ator de grande carisma na indústria do cinema, e por outro é bastante limitada, pois Bradley passa a maior parte do filme com a mesma expressão tensa que acredito ter a intenção de ser a interpretação de um cara que guarda dentro de si uma vida de opressão paterna e uma objetividade vazia como só os militares que acreditam que lutam em guerras pela pátria devem ter.
 
Um elemento que incomoda mesmo historicamente é em que momento nenhum se justifica o que os militares foram fazer naquele território de modo mais profundo para além da imagem do 11 de setembro. Não se abre discussão sobre isso em momento algum do filme, não existe crítica a toda farsa que envolve as tropas no Iraque.
 
O Iraque em questão é nomeado uma ou duas vezes e depois perde o nome dando lugar a exclamações como “que se foda esse lugar”, “lugar esquecido”, etc. Tornando-se uma espécie de não-lugar, de Marc Augé, onde não existem história, cultura, identidade, portanto, onde tudo é possível.
 
Outro elemento que achei complicado é a menção feita a AKG “uma granada russa”, exatamente desta forma. Posso nunca ter estado numa guerra, mas fiquei pensando: É possível em cada ação militar, ficar anunciando a origem do armamento? Isso é necessário? Dá tempo? Será que sim ou esta é mais uma das mensagens subliminares sobre quem é “o grande Outro”, o inimigo invisível norte-americano?

Outro elemento que pode vir de meu desconhecimento ou excesso de imagens de noticiários de ações militares dos EUA é: por que em todas as cenas os tiros eram dados no peito dos iraquianos? Um tiro errado no peito possibilita que a pessoa, se bem resignada - e ninguém questiona a resignação das pessoas em guerras - ainda reaja, atire, jogue um explosivo, mesmo que por reflexo. Em todas as imagens de guerra as pessoas mortas pelos fuzileiros estão com suas cabeças aos pedaços, ninguém reage com um projétil na cabeça, ou as vejo como um amontoado de carne, pois a munição usada é feita para garantir a morte instantânea e violenta, por vezes se projetando em vários ângulos do corpo ao mesmo tempo o que no impacto despedaça a pessoa.
 
Entretanto, como não é possível criar empatia do público se você mata de forma violenta uma mulher, um idoso, uma criança, os iraquianos em Sniper morrem com uma plasticidade dramática de tiros no peito. É importante lembrar também que cada vez que um soldado americano morre na cena é difícil ver seu rosto devido a uma nuvem de areia ou câmeras agitadas. Seria mesmo perigoso constituir uma identidade do espectador com uma personagem e depois matá-lo, ninguém quer ver seu igual morrer exceto... Eu quase ia esquecendo o “porém” da minha teoria, se o personagem for muito questionador, crítico, mesmo que sejam críticas fracas, se ele não for um sujeito “agraciado com o dom da agressão” como eles mesmos mencionam, ele morrerá no filme.
Sniper também não aprofunda o quão imoral é usar a população a qualquer preço para obter informações, expondo-os a situações-limite, apenas usa isso pra tentar criar mais ódio do pretenso inimigo, joga a vilania para que outro a assuma. A população é vista como meros peões para chegar a um objetivo maior.
 
O comediante Seth Rogen escreveu no Twitter que “Sniper Americano” lembrava aquela peça de propaganda nazista de “Bastardos Inglórios”, chamada “Stolz der Nation” (“Orgulho da Nação”), e parece um pouco, exceto pelo fato de que ao menos o cinema racialista travestido de documental de Leni Riefenstahl (O triunfo da vontade), Veit Harlan (Jud Süiss), em quem Quentin Tarantino se inspirou para fazer seu “Orgulho da nação” com certeza, possuíam ao menos uma fotografia inovadora e cuidadosa e excelentes jogos de iluminação e enquadramento para vender mentiras úteis ao governo e a população alemã da época. Sniper não consegue ser isso.
 
Referência:
BERGAN, Ronald. ...Ismos, para entender o cinema. São Paulo: Ed. Globo, 2011.

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