sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Memória gaúcha entre goteiras e farelos: o acervo do museu Hipólito pede socorro

Rafael Lapuente
O descaso do setor público com a preservação da memória não é novidade no Brasil nem nos demais estados que compõe a federação. Deste descaso, não escapa nem o Rio Grande do Sul, onde é muito comum gaúchos propalarem aos quatro ventos o orgulho por sua história, por seu passado e por sua cultura. O leitor mais atento a atuação dos grandes meios de comunicação e as ações promovidas pelo Governo do Estado, certamente, poderia me desmentir ao argumentar as comemorações que, anualmente, tomam o estado para relembrar a guerra republicana de 1835, onde os membros do tradicionalismo gaúcho explanam seu culto ao que chama de valores e tradições do estado, ou outras ações nem sempre encabeçadas pelo governo estadual, como a anual Feira do Livro de Porto Alegre promovida pela prefeitura municipal.

Todavia, se fizermos uma análise mais profunda – que desconsidere a criação de novos memoriais como o dopinha e o de Luiz Carlos Prestes, onde não sabemos como o estado atuará no longo prazo em sua manutenção - é calamitosa a situação dos patrimônios já existentes que deveriam preservar a memória gaúcha. Além de estarmos com a centenária Biblioteca Pública estadual em reforma desde 2006 e sem previsão para conclusão, com todo seu acervo deslocado em um atendimento improvisado na Casa de Cultura Mário Quintana, o funcionamento arcaico e limitado do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul sem nenhuma perspectiva de informatização dos catálogos e com incapacidade para receber mais do que quatro pesquisadores por turno, a venda do centenário Castelo de Pedras Altas com uma riquíssima biblioteca e documentos pessoais importantes para conhecer a história econômica e política regional, oferecido ao governo do estado e procrastinada uma posição de compra e conservação dos materiais presentes no castelo, também o maior acervo de jornais do Rio Grande do Sul, que possui periódicos de desde o início do século XIX está em situação periclitante.
 
O Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, localizado bem no centro da cidade e antiga sede do jornal republicano A Federação, vem passando por severas dificuldades em manter a integridade do seu acervo e o funcionamento do setor, que atende pesquisadores pertencentes desde o ensino médio ao doutorado, abarcando diversas áreas, como direito, jornalismo, história, publicidade e propaganda, sociologia, marketing, ciência política e muitos outros cursos. A imensidão da tarefa de manter o acervo hoje é atendida com apenas um funcionário, encarregado de tomar conta da organização dos periódicos no arquivo e do atendimento ao público externo, sendo provavelmente o setor que mais recebe visitas no museu – vale lembrar que o museu tem outros setores importantíssimo, como de fotografia, cinema, rádio, exposições temporárias e permanentes e atendimento a comunidade em geral, recebendo atividades artísticas e culturais diversas durante todos os dias da semana.

Além disso, a falta de estrutura é particularmente a pior que este pesquisador já viu. Com umidade e nenhum controle termostato, o prédio sofre fortes infiltrações nas paredes, que acelera o processo de decomposição dos jornais. Não obstante, os pesquisadores que frequentam o museu não recebem a estrutura adequada para realizar suas atividades científicas: Hoje o Museu não dispõe de luvas descartáveis, máscaras ou álcool em gel para os profissionais que acessam jornais com ácaros e fungos, muitos deles com mais de 70, 80, 100 anos desde sua circulação.

A situação estrutural do museu é tão preocupante que centenas de jornais estão expostos na sala de pesquisa, secando de goteiras advindas de um forte temporal que assolou Porto Alegre e atingiu periódicos como O Pasquim, Correio do Povo, Folha da Tarde, Diário de Notícias, A Ordem, O Pioneiro, Zero Hora, A Federação e outros jornais, sendo que muitos dos jornais atendidos, provavelmente, sejam os últimos exemplares disponíveis para a pesquisa, como possivelmente ocorreria se fossem destruídos os exemplares do periódico O Povo, jornal farrapo raríssimo que compõe o estoque do Museu. Sua extinção, assim como de outros jornais que tiveram duração extensa ou efêmera significaria a inacessibilidade para pesquisas futuras.

A questão pessoal prejudica o museu: A Secretaria da Cultura, hoje comandada pelo secretário Victor Hugo e ao qual o Museu Hipólito é subordinado, há anos não realiza concurso para repor pessoal. Com apenas um funcionário efetivo, quando ocorre a ausência de estagiários o setor de imprensa funciona em apenas um turno. Essa semana, o museu anunciou que atenderia o setor de imprensa apenas nas terças, quartas e quintas-feiras a tarde por não ter pessoal. O que é mais alarmante é que o setor está abrindo graças a disponibilização voluntária do único funcionário que está gozando de férias, mas para não deixar a área fechada segue realizando suas atividades. Além disso, a transição política ocorrida no estado limita ainda mais o raio de pressão e representação do museu perante a secretaria, afinal desde que José Ivo Sartori assumiu a governança estadual o museu segue sem diretor nomeado. No início do ano, até mesmo internet e telefone estiveram temporariamente suspensas por falta de pagamento.

Afora estes problemas, os jornais manuseados sofrem danificações naturais dos usos constantes. Muitos jornais estão se esfacelando sem nenhum projeto de restauro. Outros, esfarelados a ponto de serem retirados da disponibilidade dos pesquisadores, se encontram em separado para uma futura e imprevista restauração. O Museu Hipólito ainda conta com alguns jornais microfilmados, porém, a máquina de microfilme se encontra com defeito.
 
A realidade que passa o Museu de Comunicação é bastante preocupante. O desleixo do executivo estadual com a manutenção dos jornais – que não são apenas do Rio Grande do Sul: Há jornais do centro do país e de diversos países nas mais variadas épocas – é enorme, o que demonstra também que o pouco interesse pela preservação da memória pelas instituições do estado. Até mesmo uma ação do Ministério Público que percorre contra o governo gaúcho se perlonga desde 2008. Neste ponto, não há dúvidas que o Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa pede socorro.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Hipovalência social do docente no Ensino Básico

Alexander Martins Vianna
Falar de sintomas de “crise nas humanidades” no Brasil, usando exemplos de países desenvolvidos como os EUA, como se faz no artigo de Keila Grinberg para a revista Ciência Hoje, não aumenta em nada a informação sobre o tema no Brasil – que, aliás, teve uma expansão das licenciaturas, particularmente em Humanidades, entre 2002 e 2010. O tipo de paralelo feito em seu artigo é pouco consistente, impressionista (basta observar os recursos retóricos do texto) e não acrescenta nada à discussão sobre o assunto pretendido: 70% do seu artigo não leva a nenhuma reflexão crítica sobre a situação estrutural de empregos e nichos de trabalho no Brasil para bacharéis e licenciados em História. A impressão que tenho é que o artigo apenas "preenche pauta" de redação para a revista Ciência Hoje – um rito burocrático de pouco impacto social, tal como se tem feito com as metas produtivistas autorreferidas nos sistemas de avaliação de programas de pós-graduação no Brasil.

A situação de melhor empregabilidade e diversidade de nichos de trabalho para bacharéis e licenciados em História não se resolve simplesmente com a ampliação de pós-graduações profissionais em História, com a criação de disciplinas instrumentais sobre patrimônio histórico ou com o acréscimo de disciplinas de Relações Internacionais em cursos de História, ou com a ratificação social de parcerias de escrita professor/aluno para artigos em revistas acadêmicas de Humanidades. Isso é pensar o problema de um ponto de vista já comprometido, ou seja, de quem se coloca como “centro de oferta de saber” – i.e., o professor universitário das instituições públicas – e, no caso de quem escreve o artigo para a Ciência Hoje, ainda fico com a forte impressão de que o assunto é abordado e moldado para caber num ponto de vista legitimador da estrutura já existente na UNIRIO. Portanto, trata-se de uma fala comprometida apenas com a legitimação de um nicho institucional específico de trabalho – ou seja, não olha para além disso, o que explica a reação ao artigo no sítio da revista.

Em todo caso, o artigo gira apenas em torno de sintomas – mas não é ousado na (auto-)crítica. Ora, não se avança em hipóteses causais consistentes sobre tal assunto sem que o dedo indicador da crítica não esteja também acompanhado pelo polegar da responsabilização social. Nós temos um enorme déficit docente no Brasil, um déficit qualitativo, no seguinte sentido: a carreira docente tem sido concebida e praticada no sistema público do Ensino Básico com baixíssima valência social. As escolas empregam mais do que museus, centros de pesquisas e outros nichos externos à escola pública. Então, é fugir do problema pensar em outros campos de trabalho para o historiador (pós-graduado) que não a universidade sem antes combater por melhoraria nas valências social, política e intelectual do principal nicho de emprego dos historiadores graduados e pós-graduados que formamos: o Ensino Básico público.

Aliás, é impressionista e pouco consistente dizer categoricamente que a maioria dos historiadores com pós-graduação quer ser professor universitário. Quem já trabalha com ensino básico não tem apoio efetivo das secretarias de educação estaduais e municipais para ter formação continuada em pós-graduação, mas muitos gostariam de fazer a pós-graduação para voltar com tal experiência para suas escolas. As pós-graduações profissionais voltadas para tais professores abriram tal oportunidade, mas, paradoxalmente, se, por um lado, o governo federal libera bolsas para pós-graduação profissional, por outro lado, as secretarias estaduais e municipais de educação não liberam, estimulam ou apoiam os professores do Ensino Básico a buscar formação continuada em pós-graduação de qualquer espécie. Então, em larga medida, os poucos que ousam trilhar a pós-graduação se obrigam a rotinas hercúleas para manter as suas atividades na escola e na pós-graduação – rotinas que alguns professores universitários sequer sonhariam em manter em suas vidas.

O fato é que o principal nicho de emprego para nossos graduados e pós-graduados é concebido pelo poder público para massacrar e desestimular a busca pela formação continuada, além de emperrar, paradoxalmente, a plena aplicação de suas competências no espaço escolar. Então, não acredito que faltam competências em nossos graduados e pós-graduados para ensino de História. Fica completamente sem contexto pensar métodos e técnicas para “Ensino de...(qualquer coisa)” se o ambiente de trabalho é estruturalmente hostil à sua prática e formação intelectuais. Sempre fico aborrecido com professores universitários de “Ensino de...” que pensam em fórmulas mirabolantes para ensino, mas se alienam do ambiente efetivo que seus alunos terão para trabalho. No fundo, parece que o problema do Ensino se torna uma questão de competência técnica do indivíduo, havendo pouca reflexão filosófica sobre a natureza do pensamento histórico pretendido para a História Ensinada – reflexão que não pode ser panaceia para a adaptação à precariedade. O ambiente escolar socialmente hostil ao trabalho intelectual do docente precisa desaparecer para que a reflexão e a prática de ensino sejam frutíferas, caso contrário, “Ensino de...” vai se tornar “autoajuda” para os “mais esforçados” – e sabemos “que o vencedor vive só”...com suas batatas...

Penso que falta muito espaço social digno e retributivo para o trabalho intelectual que é ensinar – coisa que parece andar muito esquecida pelo poder público. Eu adoraria trabalhar no Ensino Básico – como já o fiz –, se este fosse efetivamente dignificante e intelectualmente retributivo. É sintoma de distorção estrutural o entendimento de que o magistério superior seja a única alternativa para uma relação dignificante e intelectualmente retributiva com o ensino e a pesquisa. A escola pode ser um grande laboratório; e muitos de nossos (pós-)graduados poderiam fazer brilhantes intervenções em tais espaços se não fossem tão precarizados e imbecilizados na forma de aferir responsabilidade e mérito escolar. Tal precarização cria problemas estruturais e éticos sérios, de longo prazo, no jogo da responsabilidade social contido neste tipo de trabalho.

Eu saberia perfeitamente ser professor do Ensino Básico e, ao mesmo tempo, transformar tal ambiente em objeto de estudo e promotor de métodos pedagógico em História – mas a estrutura escolar profissional efetiva não permite isso (muito raramente nos CAPs federais e IFs), o que torna uma hipocrisia institucionalizada a “PÁTRIA EDUCADORA” enfatizar pós-graduações profissionais ou licenciaturas que terão ótimos profissionais para atuarem num ambiente social hostil à sua formação: as escolas públicas municipais e estaduais do Brasil, com raríssimas exceções. Devemos nos perguntar por que a nossa estrutura de ensino público das esferas municipais e estaduais (o principal nicho de trabalho para os historiadores) se tornaram ambientes hostis ao trabalho e ao desenvolvimento intelectual do graduado e do pós-graduado de História. Por que nossos alunos, que saem das universidades cheios de sonhos e ideais, se tornam, em tal ambiente de trabalho, um animal doentio e hipovalente? Não se trata de um problema de responsabilidade individual apenas, mas de um problema estrutural que deve ser politicamente enfrentado, pois está evidente que não temos política de Estado séria e integrada para a Educação como um tudo.

Há uma “máquina de moer ossos” – para parafrasear o poeta e historiador Alberto Lins Caldas – que precisa ser contida: o fato de ainda formarmos bons alunos de História na Universidade Pública, mas estes serem destruídos física, social e moralmente por uma lógica estrutural de (des)trabalho que não acolhe a boa formação que a universidade pública ainda oferece, criando descontinuação ou falta de integração dos fatores de desenvolvimento humano – ou seja, desperdício de recursos materiais e imateriais. Os cursos de História (e demais licenciaturas, bacharelados e pós-graduações em Humanidades e Artes) perecerão em relevância social se o Ensino Básico (leia-se: o poder público) não mudar a valência social e intelectual de seus profissionais, com a reconfiguração da carreira e exigências de responsabilidades condizentes com tal reconfiguração, na qual a autonomia intelectual do docente não seja suprimida por sistemas de avaliações tecnicistas, imbecis e equivocados que não ponderam a necessidade de reformular o tempo na escola, a lógica de ocupação de turmas e a integração planejada de atividades quando se pensa numa forma de avaliação (e, portanto, num ponderador sociocultural de mérito).

Como um profissional de ensino poderá efetivamente se envolver com tanta responsabilidade se não estiver numa estrutura de D.E. que não implique em precarização, mas sim em efetiva viabilização de sua permanência qualificada nas escolas, entre aulas e projetos que efetivamente integrem a criação de processos educativos e produção (acadêmica e/ou técnica) em sua carga horária? O nosso horizonte deve ser a escola pública de tempo integral que respeite as áreas de formação acadêmica dos docentes, em que o sistema de avaliação, as turmas e as suas atividades integrem-se e correspondam-se com a natureza das áreas de conhecimento dos docentes.

É sintoma de precariedade de futuro um país manter seus docentes com uma identidade social e intelectual hipovalente. O professor universitário que não entrar neste combate também está inviabilizando o seu futuro profissional. Muitos precisam quebrar os seus espelhos de narciso, revolver a superfície d’água, redescobrir a lama, para perceberem as distorções e desintegrações estruturais em que vivem e trabalham. Não podemos continuar alienados das consequências. Não podemos nos acomodar à ideia de que já “demos a boa formação e o resto é com eles”. “Boa formação universitária” não reverbera se o principal nicho de trabalho de nossos alunos continuar hostil à sua prática e formação profissional-intelectual. Não podemos esquecer que Narciso morreu de inanição!... Se a estrutura de poder passar incólume na forma como esvazia socialmente a relevância do principal nicho de trabalho de nossos alunos de graduação e pós-graduação, nós também perderemos relevância. Os colegas de Letras sabem bem disso: Com o fim da obrigatoriedade do ensino de Literatura nas escolas públicas, muitos cursos de Letras do Brasil estão se tornando “cursos de línguas” (i.e., cursos de tecnólogos de línguas que não gostam de Literatura, em que Linguística se tornou um campo completamente distinto de Literatura – algo que seria muito estranho ao intelectual com o qual mais dialogam desde a década de 1970: Mikhail Bakhtin).

Pouco adianta refletir sobre métodos de ensino mirabolantes e pós-graduações profissionais, ou disciplinas instrumentais miraculosas nas graduações, se estamos formando nossos alunos para um ambiente hostil ao seu trabalho intelectual. Ensinar com qualidade significa um permanente trabalho intelectual, a valorização do tempo para estudo dos docentes – é lastimável e sintomático que tal truísmo tenha de ser dito às secretarias de educação municipais e estaduais do Brasil!... O professor do Ensino Básico não deveria precisar lutar pelo básico, ou deixar de receber salários, enquanto juízes e deputados recebem salários exorbitantes. Isso é uma vergonha nacional! O país entra em recessão e sacrifica médicos e professores! Portanto, ainda estamos muito atrasados para comparar nossos problemas com os norte-americanos. Nem nos aproximamos ainda dos Tigres Asiáticos... Estamos perdendo este bonde da História... E, embora história não seja destino, pode se tornar uma grande fábula no nosso “país do futuro” de presentes tão cruéis e precários...

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

“Ovelhas, lobos e pastores”: o que quer o Sniper Americano?

Fabiana Mathias - COLUNA CINEPRÁXIS
[Texto sem spoilers]
Você já deve ter conversado com um amigo que falou por horas de um assunto que para ele parecia importante, foi, veio, mil reviravoltas, mas ao chegar ao final da conversa você não entende realmente qual era o drama, a aventura, a polêmica naquilo que ele lhe contou, restou, portanto, fazer uma cara de interessado e lançar no ar algo que ficou entre um grunhido “uhum” ou “bah, que coisa né?”, este jogando ao outro a responsabilidade por emendar o assunto com outros detalhes ou simplesmente ficar contente com sua surpresa, mesmo que seja ela falsa.

O filme Sniper Americano (2015), dirigido por Clint Eastwood, se mostra uma conversa vazia a qual do início ao fim você fica tentando entender a importância, a intenção, por que se gastou dinheiro com este filme, não é atoa que depois de três semanas entre os mais vistos nos cinemas dos EUA, foi superado por nada mais nada menos que Bob Esponja – um herói fora d´água.
 
Hollywood é muitas vezes uma máquina de propaganda do Estado ou como diz o filósofo Slavoj Žižek mais explicitamente “Hollywood é o aparelho ideológico do capitalismo”. Mas Sniper é com certeza um ponto de interrogação na tela: “qual a intenção deste filme?”. Que é uma propaganda pró militares, pró guerra, pró pensamento republicano isso fica claro, mas por que um diretor consagrado pela pluralidade de produções como Eastwood aceitou fazê-lo? Mesmo ele sendo republicano dá para desconfiar, afinal, Steven Spielberg antes dele desistiu de rodar o filme.
 
Podemos pensar como diz Bergan (2011), que se trata de um filme de “propaganda”, um filme em formato documental, disfarçado de drama que tenta transmitir uma suposta mensagem, entretanto, o mesmo autor lembra que essa propaganda, que passa a ideia de que a “câmera não mente” é usada para passar verdades pessoais, interesses políticos, como ele mostra usando os filmes de Leni Riefenstahl usados como propaganda nazista. Por outro lado podemos também considerar o filme meramente “escapista”, pois traz personagens simples, uma narrativa de fácil solução dramatúrgica onde o “herói” apenas age sem trazer problemas para o espectador pensar os “porquês”.
 
Sniper não é documental, sem dúvida que não, pois o cinema documental, quando usa a guerra como objeto de sua lente, tem sido importante para barrar o simplismo de ver a guerra como natural ao ser humano, obras como “Apocalypse Now”, de Francis Ford Coppola, “Que delícia de guerra!” de Richard Attenborough, “Vá e veja”, de Elem Klimov, este último excelente, entre outros, trazem a guerra como a própria desumanização.
 
Sniper continua a tradição de filmes que foi bastante alimentada nos anos 1980 em que um militar americano, sozinho ou com sua equipe, vão para territórios estrangeiros matam e destroem tudo que vem pela frente sem se importar, como se estivesse no quintal de suas casas, com a diferença mais perigosa ainda de que Sniper é biográfico. Talvez o trauma do fracasso no Vietnã tenha criado o personagem militar invencível, da década posterior à guerra, mostrados nestes filmes. Durante todos os 1980 assistimos insistentemente cenas em que um só soldado invadia um local cheio de militares inimigos e sozinho matava a todos, sem se ferir. Filmes como Rambo (1982, 1985 e 1988), em que John Rambo (Silvester Stallone), sozinho resgatou militares, destruiu exércitos, e ajudou, pasmem, o povo afegão durante a ocupação soviética, fizeram grande sucesso. Em Comandos para matar (1985), o personagem John Matrix (Arnold Schwarzenegger) invadia um fictício país da América Latina, para resgatar a filha matando todos que encontrava e destruindo tudo na sua frente afinal ele era americano. Em Comando Delta (1986), Major Scott McCoy (Chuck Norris) tentava resgatar os reféns de um avião sequestrado por árabes, assim, aleatoriamente que eles eram apresentados, mais uma vez os americanos eram chamados para salvar o mundo. Um mundo de clichês cinematográficos que serviam em 1980 e parecem servir também em 2015, quando Sniper mostra militares impiedosos com um propósito “justo” no território alheio.
 
Eastwood tenta humanizar o personagem Chris Kyle, o atirador sobre quem o filme trata, por isso usa sua relação com sua família pra construir essa imagem de “homem de bem” clássico do conservadorismo republicano, mas mesmo nisso ele peca já que a esposa do personagem é mostrada apenas como uma chorona chata, que lhe cobra presença e passa boa parte filme grávida ou então, com os filhos em sua volta. Nos anos 1980 as mulheres gritavam e eram burras, um peso para o “herói”, parece que nada mudou para Clint Eastwood. A esposa de Chris não é mostrada trabalhando, não possui amigos, nem família, é apenas um rosto perto do telefone ou da cama. Não existe um personagem ali.

O meio familiar é o único espaço onde Kyle deixa de ser o militar, embora mesmo em casa se vista como um. Esta é a única forma humana de verdade para além do cumpridor de ordens, mas não funciona como uma forma de se aproximar dele, criar empatia, se tenta servir para redimir este de mais de 160 mortes, já que a família sempre aparece após alguma cena de ação militar, é ineficiente. Pronto, com vergonha chego ao motivo dado pelos estúdios para acharem necessário filmar esta história. 

Sniper é a história do militar responsável por matar o maior número de pessoas em uma guerra em que os Estados Unidos esteve envolvido.
 
Talvez a intenção seja mesmo, que a população dos EUA, que vem passando por uma crescente fase de empobrecimento, uma população no limite desde os governos George Bush, leia como quiser o filme e, por fim, encontre o “inimigo”, o “culpado”, ou como diz o pai de Kyle, quem “deve ser curado do mal”.
 
Atualmente 13,6% da população dos EUA vivem abaixo da linha da pobreza. Em 2010 foram estimados 46,2 milhões de americanos na pobreza, o maior número no país após a Segunda Guerra Mundial.
 
Não é de hoje na história que a propaganda e o cinema serviram para buscar culpados, inimigos ou povos para serem curados de seus maus, “bodes expiatórios” enfim. Este ano faz 70 anos do fim da Segunda Guerra Mundial e não foi pequeno o arsenal de propaganda de convencimento anticomunista, antissemita, racialista  disseminado na época para justificar o mal que foi feito. Com o fim do governo Bush a aprovação da população para ações militares caiu vertiginosamente e aumentaram o número de escândalos sobre os desmandos das tropas no exterior, para reatar os laços da sociedade com o Estado militarista americano seria mesmo necessário reativar mitos, heróis, valores, dar motivos para que, esta que a maior fonte de crescimento econômico dos EUA, a indústria bélica, encontre um novo mercado.
 
Não pretendo dar spoilers, mas expor em elementos políticos e psicológicos o que o filme traz, até mesmo porque ao contrário dos filmes A conquista da honra e Cartas de Iwo Jima, filmes considerados antimilitaristas de Eastwood, este não tem a possibilidade de ser analisado sob outro viés.
 
Assim como o filme Tropa de Elite foi glorificado pelos motivos errados, pois era um filme que denunciava a situação da segurança brasileira, a pobreza, violência e a corrupção, mas acabou servindo muito mais como uma propaganda pró militarização da polícia, Sniper tenta ser mais uma hipnose americana de patriotismo.
 
O título deste artigo “Ovelhas, lobos e pastores”, vem de uma fala inicial do filme, vale a pena ver que ali, e só ali, o personagem que a reproduz, o pai de Chris, em suas falas bem como suas ações, é mostrado com um americano insano, com seu sotaque forte, sua dominação patriarcal, sua frieza, um sulista, (olha que inovador, sempre só o sul do país é tido como historicamente incoerente no cinema), é mostrado como um homem violento, todos os outros que matam, agridem, ensinam a agredir tem um “propósito maior”.
 
Outro fato que chama atenção é a repetição de frases clichê como “cumprir ordens”, “pela pátria e família”, que parecem destoar, ficam mecânicas na tela, quase patéticas de se ouvir. Suponho que elas sejam de uso comum no mundo militar, mas mesmo assim não funcionam mais como antes pelo próprio vazio político que possuem.
 
A escolha - nem tão escolha assim, já que ele é produtor do filme - do ator Bradley Cooper, para o papel do atirador Chris Kyle é, por um lado, bem pensada, pois ele é um ator de grande carisma na indústria do cinema, e por outro é bastante limitada, pois Bradley passa a maior parte do filme com a mesma expressão tensa que acredito ter a intenção de ser a interpretação de um cara que guarda dentro de si uma vida de opressão paterna e uma objetividade vazia como só os militares que acreditam que lutam em guerras pela pátria devem ter.
 
Um elemento que incomoda mesmo historicamente é em que momento nenhum se justifica o que os militares foram fazer naquele território de modo mais profundo para além da imagem do 11 de setembro. Não se abre discussão sobre isso em momento algum do filme, não existe crítica a toda farsa que envolve as tropas no Iraque.
 
O Iraque em questão é nomeado uma ou duas vezes e depois perde o nome dando lugar a exclamações como “que se foda esse lugar”, “lugar esquecido”, etc. Tornando-se uma espécie de não-lugar, de Marc Augé, onde não existem história, cultura, identidade, portanto, onde tudo é possível.
 
Outro elemento que achei complicado é a menção feita a AKG “uma granada russa”, exatamente desta forma. Posso nunca ter estado numa guerra, mas fiquei pensando: É possível em cada ação militar, ficar anunciando a origem do armamento? Isso é necessário? Dá tempo? Será que sim ou esta é mais uma das mensagens subliminares sobre quem é “o grande Outro”, o inimigo invisível norte-americano?

Outro elemento que pode vir de meu desconhecimento ou excesso de imagens de noticiários de ações militares dos EUA é: por que em todas as cenas os tiros eram dados no peito dos iraquianos? Um tiro errado no peito possibilita que a pessoa, se bem resignada - e ninguém questiona a resignação das pessoas em guerras - ainda reaja, atire, jogue um explosivo, mesmo que por reflexo. Em todas as imagens de guerra as pessoas mortas pelos fuzileiros estão com suas cabeças aos pedaços, ninguém reage com um projétil na cabeça, ou as vejo como um amontoado de carne, pois a munição usada é feita para garantir a morte instantânea e violenta, por vezes se projetando em vários ângulos do corpo ao mesmo tempo o que no impacto despedaça a pessoa.
 
Entretanto, como não é possível criar empatia do público se você mata de forma violenta uma mulher, um idoso, uma criança, os iraquianos em Sniper morrem com uma plasticidade dramática de tiros no peito. É importante lembrar também que cada vez que um soldado americano morre na cena é difícil ver seu rosto devido a uma nuvem de areia ou câmeras agitadas. Seria mesmo perigoso constituir uma identidade do espectador com uma personagem e depois matá-lo, ninguém quer ver seu igual morrer exceto... Eu quase ia esquecendo o “porém” da minha teoria, se o personagem for muito questionador, crítico, mesmo que sejam críticas fracas, se ele não for um sujeito “agraciado com o dom da agressão” como eles mesmos mencionam, ele morrerá no filme.
Sniper também não aprofunda o quão imoral é usar a população a qualquer preço para obter informações, expondo-os a situações-limite, apenas usa isso pra tentar criar mais ódio do pretenso inimigo, joga a vilania para que outro a assuma. A população é vista como meros peões para chegar a um objetivo maior.
 
O comediante Seth Rogen escreveu no Twitter que “Sniper Americano” lembrava aquela peça de propaganda nazista de “Bastardos Inglórios”, chamada “Stolz der Nation” (“Orgulho da Nação”), e parece um pouco, exceto pelo fato de que ao menos o cinema racialista travestido de documental de Leni Riefenstahl (O triunfo da vontade), Veit Harlan (Jud Süiss), em quem Quentin Tarantino se inspirou para fazer seu “Orgulho da nação” com certeza, possuíam ao menos uma fotografia inovadora e cuidadosa e excelentes jogos de iluminação e enquadramento para vender mentiras úteis ao governo e a população alemã da época. Sniper não consegue ser isso.
 
Referência:
BERGAN, Ronald. ...Ismos, para entender o cinema. São Paulo: Ed. Globo, 2011.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

O movimentar no “tabuleiro internacional” por trás do fim do embargo cubano: uma realidade latino-americana

Gabriel Graziottin
Novos ventos soprados - Em uma era marcada pela desinformação em contraste aos avanços tecnológicos, muitas informações se perdem no ar frente a nossa falta de percepção da realidade, enquanto que os ventos soprados por Cronos passam perante nós, sem muitas vezes nos darmos conta. Desse modo, cabe utilizarmos como antídoto a essa perda de percepção histórica a constante correlação das informações que nos são despejadas cotidianamente e observarmos quais são as mudanças que vem ocorrendo no mundo, especificamente, no “tabuleiro internacional”, para assim, podermos tirar as nossas conclusões e construirmos um conhecimento, em detrimento de desconectadas informações.

Esses ventos soprados chegam até a nossa realidade, como latino-americanos, em um contexto que forja o fim de longos anos de embargo cubano perpetuados pelos Estados Unidos. O Fim do Embargo não é somente o “Fim do Embargo”, mas é a evidência do movimentar das peças no tabuleiro internacional, marcado por novas formulações estratégicas pelos centros de poder internacional, pela ascensão chinesa e sua posterior e efetiva presença no Caribe e América Latina.

Deixando a euforia da Revolução Cubana de lado e a longa resistência da ilha frente às ações imperialistas de Washington, devemos nos atentar o contexto que vem desenhando o fim do embargo e o jogo internacional subjacente à reaproximação estadunidense-cubana.

“O carro latino-americano e o motor chinês”: um novo ciclo - Crescimento chinês nos últimos anos; crescimento econômico dos países do Sul-Global (incluindo latino-americanos); diminuição da influência de Washington na América do Sul e parcialmente na América Central (região que também será chamada aqui de Caribe); Crise econômica nos países do norte (diga-se EUA e Europa), fim do embargo cubano, reaproximação de Washington e Havana, etc. O que todas essas informações nos têm a dizer? Se as compararmos devidamente, perceberemos reflexos de um período pós-Doutrina Monroe[1] e o aterrissar de um “dragão” nas portas do Tio Sam.

Giovanni Arrighi (2008) já assinalara que o centro do sistema capitalista global deixara de ser ocidental, transferindo-se para o leste-asiático em contraste com a desaceleração do Ocidente, vindo a reboque desse fenômeno a recente crise financeira de 2008, debilitando tanto os Estados Unidos quanto a Europa. Desse modo, esse novo centro capitalista, representado no dinamismo chinês impulsionou diferentes economias nacionais até então em situação mais vulnerável no sistema internacional, sejam asiáticas, africanas ou sul-americanas. Com isso, diferentes países latino-americanos se favoreceram com o “motor chinês” estabelecendo laços econômicos com Pequim, nos últimos anos.

A lógica do sistema capitalista é simples: a incessante reprodução do capital e de seu sistema produtivo. Assim, a China passou a explorar nos últimos anos o riquíssimo mercado de commodities, recursos energéticos e alimentares que a América Latina tem a oferecer, somando-se aos mercados nacionais crescentes, ávidos pelo made in China. Sim, a América Latina parece mais uma vez seguir a sua tradição primário-exportadora, entretanto, suas economias se favoreceram e muitos países cresceram através desses laços com Pequim.

O crescimento econômico dos países desenvolvidos, tradicionalmente os mercados de destino das exportações chinesas, desacelerou nos últimos anos. Com a crise financeira global de 2008, as economias europeias e norte-americanas passaram, inclusive, a se contrair. A fim de continuar a exportar os volumes necessários para manter seu crescimento econômico, o governo chinês se viu obrigado a diversificar seus mercados. E a AL se mostra um mercado muito atraente para a China. (CINTRA, 2013, p. 36) .

Isto é, como os Estados Unidos e a Europa não podem mais “acompanhar” o ciclo chinês de desenvolvimento como parceiros comerciais estratégicos, desse modo, o dragão crescentemente volta os seus olhos para outras regiões, especificamente a América Latina, formulando novas parcerias comerciais e desenvolvendo diversos projetos bilaterais. A tabela e o gráfico a baixo falam por si só da “carona” dos países latino-americanos no crescimento chinês. [2]

O dragão às portas do Tio Sam - Mas de que maneira podemos compreender o fim do embargo econômico a Cuba e o que está por trás dele com essa presença do gigante asiático na América Latina?

De acordo com Fiori (2015), a consequente “chegada” econômica da China ao continente sul-americano, e ao Caribe e América Central, sobretudo depois do anúncio da construção do novo Canal Interoceânico da Nicarágua, financiado e construído pelos chineses, vem gerando uma reação por parte dos Estados Unidos, preocupados com a chegada desse dragão em sua locus estratégico. O Caribe e a América Central sempre foram espaço de atuação e influência direta norte-americana, e agora, os seus interesses são ameaçados e entrelaçados com a presença chinesa na região.

Cuba é um dos principais destinos da China, realizando nos últimos anos reformas econômicas de flexibilizações de mercado e comercializando (a despeito do embargo) com os chineses.[3] Desse modo, a estratégia estadunidense é clara: contrabalancear e conter a ascensão do poder chinês em suas ações na América Latina como um movimento de poder hegemônico em seu hemisfério. Somando-se a mudança de estratégia frente a Havana, houve a maior exigência dos países da CELAC[4] pelo fim do embargo histórico a Cuba, tornando-se difícil uma falta de resposta a essa crescente pressão de seus vizinhos.

Assim, o Caribe a América do Sul revalorizam-se geopoliticamente como tabuleiros relevantes da competição global entre os Estados Unidos e a China. A aproximação estadunidense-cubana é um dos resultados dessa percepção por parte de Washington da ameaça aos seus interesses regionais pela chegada do dragão asiático às suas portas.[5] E também, pelo relativo abandono de sua participação nos assuntos latino-americanos, voltando-se então para o Oriente Médio e a Ásia.

As recentes negociações do fim do embargo e a reaproximação ente os Estados Unidos e Cuba é uma vitória para ambos os lados que desejam estreitar os seus laços comerciais e uma nova oportunidade para Washington reafirmar os seus interesses em seu espaço estratégico frente à presença de um insaciável gigante asiático. Terá tamanho fôlego para repeli-lo?  

Referências

ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim: origens e fundamentos do século XXI. São Paulo: Boitempo, 2008.

Cintra, Maria Rita Vital Paganini. ;  Medeiros, Carlos Aguiar de, orient. A presença da China na América Latina no século XXI : suas estratégias e o impacto dessa relação para países e setores específicos / Maria Rita Vital Paganini Cintra. . Rio de Janeiro : UFRJ, 2013.

FIORI, José Luís. Geografia e Estratégia. In: Carta Maior, 25 dez. 2014.

FONTDEGLÒRIA, Xavier. China reforça sua presença econômica nos países da América Latina. In: El País, 7  jan. 2015.

VADELL, Javier. A China na América do Sul e as implicações geopolíticas do Consenso do Pacífico. Rev. Sociol. Polit. [online]. 2011, vol.19, suppl.1, pp. 57-79. ISSN 0104-4478.

Notas
[1] Doutrina elaborada pelo presidente James Monroe em 1825, pregando a não intervenção estrangeira nas Américas sob o lema de América para os americanos. Voltava-se contra o colonialismo europeu, abrindo espaço para a posterior expansão estratégica dos Estados Unidos no Hemisfério Ocidental.
[2] “Comércio bilateral entre China e os países da CELAC”. Fonte: Nações Unidas. El País.
[3] Não só os chineses, mesmo sob o embargo oficial à ilha, comercializam com Cuba. Países europeus, sul-americanos e africanos claramente desrespeitavam o embargo, em acordos de cooperação econômica e infraestrutual.
[4] Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos.
[5] Ou como consideram muitos norte-americanos, em seu “quintal”