Dando continuidade ao primeiro artigo sobre o uso de jogos na aula de História, nesta segunda parte analisaremos o uso de RPG e de jogos de cartas, as suas possibilidades e limites, fazendo uma apologia do jogo como processo pedagógico, criador de autonomia e autoria na escola.
Meu primeiro contato com os Role-Playing Games foi durante a adolescência, quando conheci os livros-jogo, os quais são chamados de aventuras solo e possibilitam ao praticante ler e jogar ao mesmo tempo. Posso afirmar que tal experiência foi determinante para instigar o meu gosto pela leitura, pois logo me tornei mestre de RPG ao jogar Dungeons e Dragons e Vampiro: a Máscara, pois exigiu um grande volume de leitura e estudo. Também praticava os cards games: Spellfire e Magic: The Gathering, ou seja, cartas colecionáveis que podiam ser montadas em formas de baralhos para um jogo de estratégia com influências de RPG.
Já na minha atuação como professor na Rede Municipal de Porto Alegre, e antes como substituto no Colégio de Aplicação, utilizei os jogos na sala de aula a partir de elementos de RPG, e depois simulações de tribunais quanto a alguns assuntos polêmicos. Certo dia, pedi aos discentes que escrevessem uma carta como se fossem prisioneiros de guerra. A seguir, peguei os textos produzidos e distribui para os outros alunos, os quais deveriam censurar as cartas, rasurando-as, uma vez que abordava os conceitos de liberdade e censura.
Finalmente, no ano de 2013, criei um projeto pela biblioteca da EMEF. Alberto Pasqualini, chamado de Clube do RPG. Apesar do enorme sucesso e de sua intensa e riquíssima experiência pedagógica, a SMED não aprovou a sua continuidade em 2014, o que causou uma tristeza imensa para os 25 alunos que participavam das atividades.
Como já escrevi tanto sobre RPG, mas ainda não o defini, apresento o conceito de um dos principais autores de jogos de RPG com fundo histórico no Brasil, o autor de Mini-GURPS Quilombo dos Palmares Carlos Pereira:
“A sigla significa role-playing game, jogo de interpretação de personagens. Em inglês play tem várias acepções: brincar, interpretar, jogar e tocar um instrumento. Em português não há como fazer este trocadilho. Em espanhol, é chamado juego de rol; em italiano (jugo de rollo) (sic) [não foi transcrito adequadamente, pois em italiano é gioco de ruolo]; em francês, jeau de rôle. No Brasil, o nome permaneceu em inglês por alguns motivos: porque foi trazido por estudantes estrangeiros que faziam intercâmbio e porque, no Brasil, muita gente gosta de usar siglas em inglês. E ficou assim.” (PEREIRA, 2004, P.182-183).
Fortuna (2013a, p.67-74) faz também uma análise das palavras jogar e brincar, não tão breve como a de Pereira (2004) e bem mais profunda em termos de história e etimologia das palavras, jogo e brincadeira; abordando o caráter da paidia como fundamento da educação na Grécia Antiga, do sentido de ludus e vinculum em Roma, passando pelas diferenças entre as diversas línguas e desaguando em palavras como jogo (jocus), lúdico, ludibriar, brinquedo, brincadeira, entre outras. Esta dificuldade de enquadrar o jogo e a brincadeira deve estar vinculada ao fundamento e à essência dos jogos e brincadeiras: a multiplicidade de elementos que formam esta “condição paradoxal” que é o ato de jogar/brincar (FORTUNA, 2013a, p.72).
O RPG tem sido usado na educação; dentro do campo das ciências humanas conhecemos a sua potencialidade como expressa PEREIRA (2004) em sua palestra sobre ensino de história e geografia e uso de role playing. Mas no campo das ciências naturais ele também tem sido usado como na experiência relatada por RANDI e CARVALHO (2013) sobre o uso de RPG no ensino de medicina, na disciplina de Biologia Molecular, onde estudantes participaram de aulas tradicionais e outras com uso de RPG, para depois responderem questionários de uma pesquisa trazendo resultados positivos no processo de ensino/aprendizagem.
Ora, a questão central da abordagem lúdica dos processos de ensino-aprendizagem não é ensinar como agir, como ser, pela imitação e pelo ensaio através do jogo, tampouco obnubilar o ensino e os conteúdos escolares, manipulando o aluno-jogador, mas, sim, a possibilidade de desenvolver a imaginação, o raciocínio, a expressão, a relação com o outro e consigo mesmo. Trata-se da possibilidade de forjar uma nova atitude em relação ao conhecimento, ao mundo, ao outro, a si mesmo e, por conseguinte, em relação à vida, com evidentes implicações para o sucesso escolar e a inclusão social.” (FORTUNA, 2013, p.81)
Esta nova atitude frente ao conhecimento pode ser apoiada pelo uso do RPG, tanto na sala de aula como na experiência do Clube de RPG, em outro espaço escolar como a biblioteca. Existem, evidentemente, diferenças entre o uso de jogos em uma sala de aula lotada e o seu uso em um lugar e horário externo, em outro espaço da escola, como a biblioteca. No meu caso já trabalhei com os dois. Quando trabalhamos o RPG na sala de aula, devemos ter a noção “[...] que não queremos didatizar o jogo no sentido de pensá-lo como técnica única ou método capaz de garantir melhores resultados em relação aos vividos em nosso cotidiano como professores. [...]” (MEINERZ, 2013, p.102).
O Projeto do Grupo de RPG (Role Playing Games), vinculado à Biblioteca do Pasqualini, foi um grande sucesso neste ano de 2013, e ainda demonstrou diversas possibilidades pedagógicas: 1) Incentivou a leitura, a interpretação e produção de textos fortalecendo a autoria e protagonismo dos alunos; 2) Estimulou a criatividade, a imaginação e a narração de histórias por parte dos estudantes; 2) Criou um espaço lúdico onde o jogo pôde apoiar o processo de ensino-aprendizagem; 3) Fortaleceu a proposta efetiva de turno integral, atraindo os alunos para atividades no contra-turno; 3) Possibilitou o contato do aluno com culturas juvenis muitas vezes apreciadas, mas praticamente inacessíveis na periferia das cidades.
Uma pena que toda esta experiência não sensibilizou os tecnoburocratas que escolhem os projetos das escolas, porque mesmo após todo o esforço, infelizmente a proposição não foi aprovada pela SMED. Contudo, posso dizer que os dois textos são de grande valia para a continuidade de projetos desta natureza, considerando que denotam a riqueza da experiência que deverá ser construída em outro espaço. Espero continuar usando os jogos para incentivar a leitura e a criatividade dos alunos, pois tenho observado resultados interessantes: alunos que melhoraram sua leitura e interpretação, outros com problemas de dicção, os quais se tornaram mestres de RPG; além do mais, nas duas escolas onde trabalho, no Bairro Restinga, o jogo cumpre um papel sadio de levar entretenimento a uma região onde o clube poliesportivo está sucateado e não há cinema ou teatro, onde muitos alunos já foram assassinados e tiroteios ocorrem em plena luz do dia, fazendo com que alguns alunos acabem encontrando na escola a segurança e a esperança inexistentes.
Os Role-Playing Games foram poucos explorados no que tange ao sentido pedagógico, apesar de conterem um grande potencial relativo à leitura, à interpretação de textos e à criação de narrativas por parte dos alunos. Assim, durante o funcionamento do projeto, o público fiel e motivado que semanalmente participou da leitura de livros-jogos pode desenvolver a técnica da leitura/escrita, da interpretação de textos e da oralidade ao criar a própria narrativa, seja das mesas de R.P.G. ou de outros jogos influenciados por R.P.G., como Magic The Gathering e Spellfire. Alguns dos alunos que ingressaram no Grupo de RPG enriqueceram seus vocabulários em português e inglês, já que muitos jogos não são traduzidos, e também exercitaram as dificuldades de escrita, leitura e dicção apresentando uma melhora significativa. O ápice do nosso grupo ocorreu durante a confecção de novos jogos, com personagens e um complexo sistema de regras que os participantes criaram com as cartas de RPG, fortalecendo a autoria e o protagonismo dos aprendizes.
O uso de RPG para o ensino de história – precisamente com o GURPS (Generic Universal Role Playing System), Quilombo dos Palmares e pitadas de RPG em exercícios – bem como o projeto da biblioteca mencionado anteriormente apresentam diferenças, mas se complementam certamente. Enquanto o primeiro é uma ferramenta em potencial para ambientar e seduzir o aluno no campo da história para o objeto de estudo, o segundo é um espaço livre para os alunos jogarem, lerem, criarem personagens, mapas de cidades imaginárias e novos jogos. Vale ressaltar, ainda, que a novidade e a sensação de acolhimento por parte da escola foram fundamentais para fomentar o interesse dos discentes, considerando a falta de acesso a estes materiais personalizados.
Referências
FORTUNA, Tânia Ramos. Brincar é aprender. PEREIRA, Nilton Mullet, GIACOMONI, Marcello Paniz (orgs.). Jogos e Ensino de História. Porto Alegre: Evangraf, 2013. p. 63-97.
FORTUNA, Tânia Ramos. Morte e Vida do Brincar. S.d. documento eletrônico. 2013b.
MEINERZ, Carla Beatriz. Jogar com a História na sala de aula. PEREIRA, Nilton Mullet, GIACOMONI, Marcello Paniz (orgs.). Jogos e Ensino de História. Porto Alegre: Evangraf, 2013. p. 99-116.
PEREIRA, Carlos E.K. RPG nas aulas de História e Geografia. In: SIMPÓSIO RPG & EDUCAÇÃO, 1, 2002, São Paulo. Anais do I Simpósio de RPG & Educação. São Paulo: Devir; 2004. p. 180-216.
PEREIRA, Nilton Mullet; GIACOMONI, Marcello Paniz. Flertando com o Caos: os jogos no ensino de História. PEREIRA, Nilton Mullet, GIACOMONI, Marcello Paniz (orgs.). Jogos e Ensino de História. Porto Alegre: Evangraf, 2013.
RANDI, Marco Antonio Ferreira; CARVALHO, Hernandes Faustino de. Learning through role-playing games: an approach for active learning and teaching. Rev. bras. educ. med., Rio de Janeiro , v. 37, n. 1, Mar. 2013 . Disponível em Acesso em 3 Jan. 2014.
SEFFNER, Fernando. Aprender e ensinar história: como jogar com isso. PEREIRA, Nilton Mullet, GIACOMONI, Marcello Paniz (orgs.). Jogos e Ensino de História. Porto Alegre: Evangraf, 2013.
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